domingo, 31 de maio de 2009

'ERA UMA VEZ...' UM FINAL DE TARDE


Pediram-nos para nos imaginarmos numa manhã de domingo, há alguns anos atrás, em frente a uma emissão da RTP. No palco uma orquestra e várias dezenas de coralistas desde os seis aos quarenta e muitos, presentearam-nos, em jeito de ‘Músicas para Sonhar’, com algumas das músicas que nos fizeram regressar a diversas das séries de banda desenhada, e não só, das nossas infâncias, muitas que os infantes de hoje também não perdem. Em pouco mais de uma hora passaram pela nossa lembrança o Tom Sawyer, a Abelha Maia, o Sítio do Picapau Amarelo, o Barco do Amor, o Dartacão, o Vickie O Viking, Os Amigos de Gaspar, o Era uma Vez [de que aqui deixo o genérico], e outros mais. Uma forma extraordinária de concluir o fim-de-semana graças ao empenho, dedicação e imaginação da equipa do Conservatório de Música de Sintra. O meu pequeno vagabundo estava lá e eu… só pude ficar feliz... e agradecer.




IRMÃOS DE TOM

Foto de Stephanie Daniels


Fora uma criança igual a tantas outras. Atenta, desperta para o que a rodeava, alerta para constantes revelações era, porém, extremamente reservado. Evitava evidenciar-se. Provavelmente por timidez, nunca se sentava nas primeiras filas da sala de aula. Ainda que sabendo a resposta, nunca mostrava sabê-lo. Nas fotografias de conjunto tentava sempre esconder-se atrás de alguém. Discretamente procurava, incessantemente, o degrau abaixo dos outros e até a intensidade da sua voz reflectia a sua personalidade.

Por força deste auto-encobrimento aconteceu, muitas vezes, não estar entre os eleitos. Ainda que presente acabara, frequentemente, por não participar. A tristeza revelou-se a marca da sua imagem.

Um dia encontrou alguém tão puro quanto ele. Mas… totalmente oposto a si. Alguém que precisava de acrescentar, constantemente, um pormenor ao que fora dito. De falar um pouco mais alto que os demais. De se puxar para a frente em qualquer alinhamento. De se fazer notar. De se mostrar. Sem poder ser considerado, com rigor, como exibicionista gostava de ter a certeza de que os outros reparavam nele, que o viam, que o ouviam.

Esta veemência acabava por lhe trazer alguns dissabores, pois nem sempre era aceite com tolerância. Embora sempre o tentasse, acabava por participar menos do que os outros. Mas tal nunca foi razão para que esmorecesse.

Terá sido esta oposição de maneiras de ser, em conjugação com a percepção duma mútua ténue rejeição por parte dos outros, que os uniu. Complementavam-se. Equilibravam-se. E sem que abdicassem das suas características, sem que se pudessem substituir, eram parceiros, cúmplices. Sem que qualquer deles dependesse do outro, aprenderam que só poderiam viver onde o outro estivesse.

Foi tão forte a sua união que se tornaram únicos. Nem gémeos são. São o mesmo. E agora, quando um compositor precisa de acentuar meio-tom chama pelo sustenido. Se desejar acentuar a melancolia, chama o bemol. E como resposta vão sempre os dois, bem juntos, sendo um único, mas só toca aquele que foi solicitado porque o outro… o outro está lá no mesmo sítio à espera da sua vez e, em silêncio, a prestar todo o apoio ao irmão de tom.

sábado, 30 de maio de 2009

VERSOS BRANCOS

Foto de Simona Andrei


Perco-me à tua procura
na madrugada de ondas
que sussurram místicos segredos
para não acordar o mar.
Só encontro saudade resinada
escorrendo pelo tronco
onde deixaste as folhas
que me cobriam o olhar.

Dispo-me à frente do vento
para que meu corpo grite
o frio que arrepia a pele
quando as mãos se ausentam.
São meus dedos que escrevem,
escravos da pena a que me dedico,
versos brancos na neve
à espera dos teus passos
para que os decifres.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

ACREDITAR


As águas do rio estavam revoltas quando, a meio da ponte, parou para contemplar aquela ilha que o obrigava a uma bifurcação momentânea antes de se tornar, outra vez único, um pouco mais à frente. Percorreu o que faltava da ponte, atravessou para o outro lado da avenida e, pela praça, embrenhou-se no labirinto de travessas. As ruas eram apertadas e a sua relação totalmente anárquica. Era devido saber ler muito bem as linhas da palma de uma mão para adivinhar a que beco iria dar aquela travessa, em que praça terminaria, ou começava, a rua que se lhe seguia.

Escondia-se uma luminosidade de final de dia, servindo de prólogo à noite. Era, mesmo assim, possível adivinhar que as fachadas de grande parte daquelas casas eram banhadas por sombra. Seriam muito curtos os períodos do dia em que o sol as acariciava. Considerando a sua estreiteza, o sol devia percorrê-las a uma velocidade estonteante em busca de uma ou outra praça onde se espreguiçar e deixar respirar a sua luz por mais tempo.

Caminhou ao acaso perdendo-se naquelas ruas onde as janelas de um prédio pareciam segredar às varandas do edifício em frente. Atraído por uma melodia que lhe parecia familiar entrou numa viela esconsa. O som nascia numa pequena loja de discos que reproduzia um tema de Ludovico Einaudi. Ao lado existia uma frutaria e logo em seguida uma charcutaria. Fingiu ficar a apreciar as frutas, os legumes, os queijos, enchidos e massas frescas, para se deliciar mais um pouco com aquela música que lhe entrava pelo coração.

Deambulou por mais umas ruas passando em frente ao cinema do bairro. Três fortes vigas de madeira apoiavam a fachada do prédio na tentativa de evitar, ou adiar a sua derrocada. Os cartazes anunciavam uma reposição de La vita è bella. Não haveria outro filme que melhor sugerisse a crença que tinha na vida. A noite começava a cair e, mesmo com o céu limpo, a humidade de Novembro fazia-se sentir no corpo. Numa pequena praça mesas de madeira alinhavam-se numa formatura de esplanada. Bancos, também de madeira, repousavam, com os apoios virados para a lua, nos tampos das mesas. Duas candeias acesas iluminavam a escuridão que começava a abraçar o final de tarde. Ao lado das mesas, cestas altas enchiam-se de laranjas.

Àquela hora a esplanada já não funcionava. Tirou um banco de cima de uma das mesas e sentou-se estrategicamente voltado para um prédio, no qual um vidro rectangular rasgava a altura de dois andares. Um bloco sólido de degraus era perceptível através dessa janela ao alto. Adivinhavam-se luzes baixas aquecendo um ambiente modernista no interior daquele edifício com o peso de longas décadas de vida. Ficou discretamente observando. Seguro de que esperava por algo que iria acontecer. Pouco tempo depois uma mulher desceu os degraus. Vestia uma t-shirt e umas calças de ganga. Denunciava que a temperatura lá dentro contrastava com o frio que se começava a fazer sentir na rua. Por instantes desapareceu do seu horizonte visual para surgir, logo em seguida, numa janela muito menor à esquerda. Via apenas o seu perfil. Adivinhava que estaria a preparar algo num balcão de cozinha. Permaneceu mais um pouco. Contemplou-a por minutos. Como sempre fazia quando necessitava de acreditar que um dia voltá-la-ia a olhar olhos nos olhos e dizer-lhe que não a esquecera.

Levantou-se. Puxou a gola do sobretudo para cima. Improvisou um caminho de regresso diferente. Eram poucos os candeeiros que iluminavam as ruas. Foi intencionalmente dar a uma praça que parecia enorme para a dimensão das pequenas e estreitas ruas que a circundavam. Entrou numa igreja que dominava, quase na totalidade, uma das larguras da praça. No altar, o sacristão ordenava algumas coisas para os ofícios do dia seguinte. Ao vê-lo entrar, olhou intencionalmente para ele e para o relógio de pulso a lembrá-lo de que se aproximava a hora de fechar.

Caminhou em direcção à imagem de Santo António, com o Menino ao colo, e certificou que continuava estrategicamente colocado o pedido que lhe deixara. Saiu e enfrentou o frio.

RUI, HOJE!

Foto de U. Midtgaard

Caro Rui,

Deverá existir 0,099% de possibilidade de que algum dia leias estas linhas. Não faz mal! Escrevo-as mais por mim. E se for importante que tu saibas delas, acredito que algo te o proporcionará.

Inspirado num dos excertos das tuas peças, que só agora conheci apesar de já ter mais de 10 anos, escrevi um outro texto que talvez por aqui deixe qualquer dia. Ao escrevê-lo regressei atrás no tempo. E lembrei muita coisa. Tanta coisa. Foi como reviver o escrever dos textos de imprensa sobre os teus primeiros trabalhos, no teu regresso a Portugal. Voltei ao passado ao relembrar quando te os mostrei, quando discutimos a minha visão sobre as tuas criações e, depois, foi um correr de memórias. O teu receio de que os títulos que escolhias, principalmente o da Cartografia... pudesse ser considerado muito pretensioso. Lembrei e voltei a sentir o meu orgulho na partilha do êxito do teu regresso ao nosso País. Como o ‘mal-amado’ reentrava com o reconhecimento granjeado no estrangeiro por uma porta grande, muito grande. E lembrei algo do que, na altura, não pude evitar escrever-te pelo privilégio que senti de estar envolvido na ‘máquina’ que te trouxe, que te acolheu. E lembrei os arrepios e o apertar de garganta sentidos quando o GA te aplaudiu. E lembrei como fui surpreendido pelo acolhimento das tuas obras quando as apresentámos na Alemanha.

E foi hoje que escrevei esse tal texto e as memórias correram. E foi hoje que te encontrei na rua. Há coincidências inexplicáveis… e foi hoje que conversámos brevemente sobre as mudanças de rota a que a vida nos obriga. A que tu já passaste. A que eu estou a atravessar. E foi hoje que me deste força pela tua experiência recente. E com o teu charme característico me disseste que confiasse, que daqui a pouco tempo já conseguiria ver este momento como ultrapassado. E…

E hoje à noite, no teu rosto, revi o orgulho e a satisfação. Os ‘miúdos’ portaram-se mesmo bem! E eu nem ouvi o que depois lhes disseste. Não preciso de saber! Tu quando falas… sabes como cativar. E eles estavam no céu por te interpretar. E, seguramente, tu terás sido capaz de lhes dizer: ‘Obrigado! Sinto-me orgulhoso do trabalho que fizeram.’ Com lágrimas nos olhos, se preciso. E eles… se estavam no céu, terão subido para lá dele. E eles que estão a finalizar a sua formação, irão recordar para sempre as palavras do ‘Deus’, as tuas palavras. Mas eu não precisei de ouvir essas palavras que nem sei se terão sido essas. Não precisei pois li no teu rosto, enquanto a peça decorria, o orgulho verdadeiro que corria dentro de ti.

Perdoa-me estas palavras sentimentalonas. Mas são as que sinto como verdadeiras. Hoje! Hoje, neste dia em que me disseste que eu talvez te considerasse romântico por me revelares algo em que acreditaste... Se acreditar com o coração é ser romântico… TU ÉS ROMÂNTICO! Mas é tão bom acreditar com o coração… o pior é que a vida prega-nos partidas.

Um abraço.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

CALCULISTA

Foto de Mal Smart

Fora, por natureza, um ser calculista. Organizado e metódico possuía traços de investidor. Nunca o evidenciara por falta de recursos suficientes para o materializar. Apostara sempre no poupar, no amealhar antes de adquirir. Muitas vezes incompreendido, tinha pautado a vida por esse princípio e poder-se-ia considerar bem sucedido. Sem qualquer queda para a agricultura, adoptara os princípios básicos da mesma. Semeava, regava, estrumava, podava para ‘mais tarde’ colher, consumir e… voltar a semear. Pusera esse empenho, essa lógica, na gestão financeira, na profissão, na família, nas palavras e, até, nas afeições. Acreditara que deveria dar aos seus para mais tarde receber. A sua distribuição de carinho, de ternura, de afectos tivera sempre como princípio o dever de o fazer para garantir poder recebê-los sempre que necessitasse. Como se houvesse no coração dos outros uma arca frigorifica onde guardassem palavras de atenção, carícias, momentos de compreensão, beijos e abraços. Como se no coração dos outros houvessem gavetas possíveis de abrir quando ele necessitasse de se sentir acarinhado, compreendido, beijado ou abraçado. A inquietude não lhe tocou enquanto se sentiu autónomo, capaz e com poder de decidir, enquanto os outros dependeram das suas ‘dádivas’ para adquirirem emancipação. Contudo todos os seus cálculos e organização não lhe permitiram perceber que os afectos não se armazenam, por muito que se semeiem nunca serão garante de que irão dar fruto. Assim, quando sentiu a sua falta ficou à espera. Seguro de que chegariam os que julgava ter capitalizado. E esperou sem pedir porque o orgulho assim o obrigava. E continuou à espera. E só depois de muito esperar percebeu que as tais gavetas frigoríficas estariam vazias ou não teriam sido capazes de conservar devidamente a pureza dos tais afectos. Só quando precisou deles se apercebeu ter desperdiçado o melhor desses afectos, de não ter aproveitado o prazer maior deles: o de senti-los enquanto estiveram vivos. E hoje contava os reduzidíssimos momentos em que tal acontecera e constatou serem tão poucos para os que tinha ilusoriamente semeado. Só então terá percebido a importância e o valor de saborear os afectos com toda a paixão, sugando-lhes todo o sumo, de espreme-los até à última gota de vida.

É!



Fugir é morrer de um lugar

Mia Couto, in 'O Dia em que explodiu Mabata-bata', in 'Vozes anoitecidas', Lisboa, Editorial Caminho, SA, 1987



Para quem não conhecer e tiver a curiosidade de ler o conto – que aconselho! – poderá encontrá-lo aqui

quarta-feira, 27 de maio de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?

Foto de Philip LePage


‘Obrigado Clara! Às oito e meia passo por tua casa. Até logo!’

‘É tão bom que tenhas vindo. Estou mesmo a precisar de comentar algumas coisas estranhas que me vêm acontecendo.’
'É bom de facto. É sempre um prazer conversar contigo. Vamos adiando consecutivamente e quando damos por isso já passou demasiado tempo sobre a última vez. Mas conta-me o que tanto te atormenta.’
‘Clara, é uma história tão irreal e ridícula que não admito, a mim própria dar-lhe valor, mas acontece que não consigo desligar-me dela! Uma pessoa que não conheço, nem sei quem é, começou a enviar-me mensagens e deixou-me recados… é alguém que me segue as passadas para o conseguir fazer com tanta precisão. Um louco certamente. E nem sequer sinto receio. Com medo, estou eu, das minhas reacções, da minha incapacidade de reagir e de agir com determinação. Um dia telefonei ao fulano para o descompor e… acabei por pouco lhe dizer. Subitamente fui incapaz de dominar a minha vontade. Devo estar muito cansada. Inesperadamente as coincidências parecem repetir-se… hoje, num semáforo percebi que o condutor do carro de trás me fixava através do retrovisor. Fiquei com uma insistente sensação de que já me fixara naquele olhar e acabei por me lembrar. Quando me bateram no carro tinha-me acontecido um cruzamento de olhares com alguém que estava parado por perto e… sabes o que é ainda mais idiota? É achar que é esse homem o autor das mensagens e recados.’
‘Mas querida… tudo o que me contas é uma loucura. E se ele é mesmo um demente? Se fosse a ti já tinha era falado com a polícia. Sabes lá as ideias do homem…’
‘Acreditas? Já ponderei essa possibilidade. Mas não tenho qualquer receio… quer o seu olhar, quer as suas palavras não me transmitem obsessão. Apenas vontade de dizer algo… e o que me irrita é a forma como mexeu comigo, como me incomoda com algum sabor, como me ocupa o tempo, o pensamento… e é isso que não admito. E é por isso que tudo quanto me apetecia fazer seria descompô-lo. Mas…’
‘O quê?!?! Não! Não acredito… estás a querer dizer-me que estás… apaixonada?... por um fantasma? Não acredito!’
‘Não!!! Acho que não. Não sei…’
‘Mas… minha amiga, estás a precisar de sair, de te distraíres, de pensares noutras coisas…’
’Clara… eu tenho-o feito. Mas a verdade é que o meu pensamento foge sempre para… aquelas palavras…’
‘Então… só vejo uma solução. Tu própria desconstruires essa história. Fala com o fulano e esclarece contigo mesma toda essa irrealidade. … evitar talvez não seja o melhor caminho… sei lá eu… nunca pensei estar a dizer-te isto, mas…’
‘Achas mesmo?!...’
‘Se estás tão crente que ele não é um desequilibrado… é que, por vezes, talvez devamos questionar a justiça da razão.’


SEM TEMPO

Foto de Mikael Hörnlund

Estou algures entre o passado e o futuro,
               entre as memórias e o desconhecido,
    entre o vivido e o desejado,
                         entre o perdido e a aridez, 
         entre as mãos que se abrem e as que se estendem. 

Só não estou aqui,
                         no presente,
         no agora,
             no eu,
                 na vida.
                                                     E sinto-me desperdiçá-la.

terça-feira, 26 de maio de 2009

RUMO A...

Foto de Renato Corradi

Se eu soubesse que no oceano há uma ilha deserta, ou abandonada, onde fosse possível deitar, no areal, o meu corpo ávido de calor. Se nessa ilha nascesse um ribeiro onde pudesse saciar minha sede de ternura. Se nela se plantassem árvores que dessem como fruto palavras de paixão, e delas rompessem ramos que me abraçassem. Se nessa ilha houvesse um lago onde mergulhasse meus desejos. Se nela existissem videiras de onde se extraísse um licor que me inebriasse o coração. Se no céu que a envolve brilhassem estrelas que em forma de olhar me sorrissem. Se eu soubesse que anseias pela minha chegada… seria caravela de panos desfraldados ao vento, navegando rumo a… uma ilha.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

PÁGINAS ABERTAS

Foto de Elaine Vallet


Entraste no meu livro e percorreste-o página a página. O teu perfume foi ficando espalhado pelas palavras e o teu prazer de descobrir gravado nos espaços que as separam. Foi tão ansioso o teu espraiar que eu próprio te li parágrafos passados, te dei a mão para visitares comigo memórias há muito arrumadas. Abri páginas antigas ao sentir a tua vontade de as ler. Trouxeste sol às minhas palavras cinzentas. Transformaste em rio as minhas emoções desérticas. Abrimos estradas para aproximar sentires. Fizeste crescer palavras que escrevi. Alagaram-se de prazeres as páginas em que te passei a compor. Tornaste-te semente e fruto. Lágrimas regaram novos vocábulos. O teu olhar deixou de ser leitor para se converter em actor do que escrevi. Despontou o Verão em inúmeras linhas frias. Sopraste uma brisa esfriando a canícula dos silêncios. E hoje quando as páginas continuam abertas, mas o teu olhar passa e não entra nelas, digo-te que há uma letra tua em cada palavra que o meu coração me dita.

domingo, 24 de maio de 2009

CONQUISTAS

Foto de Dare Turnsek

Há muito, muito tempo, quando as madrugadas se douravam no mar, num reino muito longe daqui, para além da fronteira do sol, havia um soberano reconhecido e respeitado por suas conquistas. O seu tempo, e o dos seus mais próximos servidores, era gasto a descobrir novos objectivos, planear estratégias e consumar os actos que alargassem os seus horizontes de domínio. A sua arte de delinear e preparar, mais do que as armas e o poderio humano, garantia-lhe o sucesso das suas demandas. A contundência das novas invasões eram garante de êxito e obediência por parte das vítimas que se vergavam à sua superioridade e que acabavam por ceder e lhe prestar vassalagem.

Um dia o soberano chamou o seu filho varão e ordenou-lhe que partisse em busca de novas conquistas. Que alargasse o reino que viria a ser seu, uma vez que herdasse o seu reinado. Era a primeira vez que lho exigia. Seria a primeira vez que o príncipe partiria na tentativa de imitar as pisadas do pai. Determinou, ainda, o rei que acordasse com o seu conselheiro de armas, a quantidade e variedade de equipamento bélico a preparar, bem como a quantidade de homens que o serviriam. Não quis o rei dar-lhe nenhuma directriz, com o intuito de lhe mostrar confiança e estimular a sua responsabilidade e capacidade de decisão de futuro monarca.

Desconheciam os conselheiros reais as intenções do príncipe quando este se lhes dirigiu. Mais espantados ficaram quando o infante lhes revelou querer partir sozinho com a sua montada. Por considerarem não dever duvidar das intenções do príncipe, a quem aliás o rei não havia dado propósitos concretos, os conselheiros reais admitiram que o filho do monarca partiria apenas em prospecção. Mesmo assim decidiram nomear uma escolta para responder pela segurança do futuro rei.

Umas semanas mais tarde, o príncipe apresentou-se perante seu pai. Após um abraço mais formal do que familiar, o rei pediu: ‘Dizei-me meu filho o que haveis conquistado, quem Vos jurou fidelidade, quem fizestes Vosso prisioneiro?’ O príncipe respirou, parecendo tomar fôlego para o que se preparava dizer. ‘Meu senhor, conquistei o coração mais belo, da dona do rosto mais desenhado do mundo. Jurámos fidelidade eterna um ao outro e fui eu que me tornei prisioneiro do seu sublime coração!’ O rei caiu em si. Ruborizou-se-lhe o rosto. Deu um passo em frente e gritou: ‘Re ti raaaaaaaai-Vos!’ O príncipe baixou a cabeça. Imperceptivelmente pediu: ‘A sua bênção meu pai!’ Recuou em direcção à saída e voltando-se passou a porta do salão. Ficou sem perceber se o pai ficara desiludido por ele não ter cumprido as expectativas que criara em torno da missão de que o incumbira; se teria compreendido quanto mais importante poderá ser a conquista dum sentimento que abra, de par em par, as janelas da alma, do que inúmeros avanços terrenos conseguidos por força das armas e da força… ao sair, o príncipe não se apercebeu de que o rei virara as costas para a entrada, a fim de dissimular uma lágrima que lhe escorria pelo rosto.

sábado, 23 de maio de 2009

MEU NOME NA TUA VOZ

Foto de Calisto


Deixa-me ouvir meu nome na tua voz

como naquela noite em que ficámos sós

e as palavras tomaram conta da conversa

bebendo tragos soltos de emoção dispersa

pequenos voos libertos pelo coração

segredos saboreados ao abrir duma mão

e mesmo que a vida continue sem nós

deixa-me ouvir meu nome na tua voz!


sexta-feira, 22 de maio de 2009

PARTISTE

Foto de Xavier Rey


Partiste como se levasses a vida numa mala. Os segredos guardados, fechados, trancados, esquecidos. Partiste de olhar baixo para evitar quem te questionasse, ou com receio de enfrentar o estreitamento do horizonte. A tua pele era um vestido simples, da cor da tua beleza, com o perfume da tua serenidade. Caía e ondulava ao som dos teus passos. Descalços para sentir o chão, para desenhar trilhos inigualáveis ou para entrar no rio. A partir do cais onde atracaste em mim. Onde descarregaste todos os tesouros com que me presenteaste, com que me fizeste acreditar na possibilidade de ser um grão de areia na tua praia. Agora vais ter de atravessar o rio e chegar à outra margem. À tua margem onde deixaste o resto da tua vida que não levas agora na tua mala. A tua margem onde guardas os teus segredos. Alguns que desfolhaste para mim. Outros que serão só teus. Até à outra margem onde o meu olhar já não te alcança. Apenas adivinha. Com ilusão, com crença imaginária. Com erros de quem não vê. De quem não lê. A mim resta-me esperar. Que um dia regresses. Que um dia te canses de caminhar contra o vento da saudade. ou então… esquecer!

quinta-feira, 21 de maio de 2009

LISBOA SONG

Fotografia de Amy Yoes


São dezasseis páginas. Dezasseis estrofes duma canção. Que nos leva embalados ao som dum imaginário sem tempo. Transportando-nos nos ecos duma melodia que nos perfuma a pele, nos fecha os olhos e nos transporta numa nuvem através das ruas da cidade. Lêem-se num só trago. Mas decidi lê-las de novo. Porém, na segunda vez, só uma de cada vez. Como se fossem pequenos e valiosos doces. Que não se querem acabar para não se lhes sentir a falta. Que se desejam saborear para ter a certeza de que se aproveita cada palavra derretendo na boca. Uma página, e só uma, de cada vez. Com toda a calma. Sem pressa. Com serenidade. Sem sofreguidão. Com amor. Sem paixão. Sempre e só uma página. Antes de adormecer. Para levar para o sono passagens assim: “Amávamo-nos de tarde, quando o calor de Julho se detinha sobre a cidade, e vivíamos as noites a percorrer as sombras, adivinhando esquinas para lá de portas, dramas além das janelas, amores fugazes na penumbra das escadas. Como nos amávamos, contávamos histórias um ao outro, porque o amor inventa os enredos e alimenta-se de equívocos. A nossa vida é um desperdício, disse-lhe uma vez. O nosso amor é que é, respondeu, talvez a vida não nos mereça e é isso que faz do nosso o único amor ainda possível. Eu fingia que não podia compreendê-la, mas acreditava nela, como quando se quer acreditar em alguma coisa que traz consigo a suspeita de uma mentira.” 

António Mega Ferreira, o autor de Lisboa Song, inspirou-se em fotografias de Amy Yoes para escrever este diálogo que revela ser uma homenagem ao livro Índia Song de Marguerite Duras. A impressão em papel, editada pela Sextante, não favorece as imagens da norte-americana que poderão ser melhor apreciadas aqui [numa altura em que a fotógrafa fazia referência a que os textos nunca haviam sido publicados…]

quarta-feira, 20 de maio de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?


Foto de Philip LePage

‘Leonor, vou ter com o André para estudarmos a maqueta do catálogo. Quando o Dr. Mendonça Vargas sair, por favor diga ao Pedro que só voltarei depois de almoço.’ Voltou ao gabinete para pegar na mala e no dossier onde tinha o processo com a informação relativa ao catálogo. Enquanto descia no elevador procurou na mala as chaves do carro. A razão gritava-lhe para não mergulhar nas memórias de que não conseguia fugir; para as quais procurava resolução mas sem encontrar caminho. Aquelas palavras enigmáticas, aquele telefonema que lhe transformara a sua intenção… era inexplicável a forma como a tinham perturbado verdadeiramente. Afundada nestas lembranças ligou o carro, saiu do parque, subiu a rampa e aguardou que lhe permitissem entrar no trânsito. Era quase hora de almoço e o movimento começava a aumentar. O vermelho acendeu-se no semáforo e obrigou-a a parar. Ao olhar no retrovisor percebeu que outro olhar também lá estava. Impulsivamente manteve o seu olhar no espelho e consequentemente no outro olhar que a olhava. Mas… aquele olhar lembrava-lhe algo… era como se o já tivesse visto… mais ainda… era como se este fosse a repetição dum momento já vivido. Tentou afastar estes pensamentos e prometeu a si própria ir ao médico o mais breve possível. Na fracção de tempo que passou voltou a olhar o espelho e… o outro olhar continuava lá. O verde acendeu-se. Pôs o carro em movimento e tentou concentrar-se no que iria discutir com o designer.
...
‘André, parece-me bastante bem. No entanto, peço-lhe que crie um pouco mais de espaço entre os limites do bloco de texto e a mancha de fundo, tente dar, ainda, um pouco mais de respiração e... talvez esbater ligeiramente alguns tons. Acho que prefiro uma maior transparência. As cores menos marcadas parecer-me-ão mais cativantes. Mas muito bem. Gosto. E são muito interessantes estas discretas alusões ao catálogo passado. Não estou tão certa de ser necessário termos no final essas mesmas marcas mais vincadas...’
‘Pense na fidelização dos seguidores. Ao longo do catálogo essas referências podem ser simplesmente uma opção gráfica. Só os seguidores fiéis poderão, eventualmente, referenciá-lo como uma recordação do passado. O seu reforço, no final, pretenderá confirmar essa cumplicidade. Aí terão a oportunidade de voltar atrás e confirmar as lembranças, de perceber onde viram e quais as memórias que guardaram…’
’É isso André!!!’
’Desculpe…’
’Obrigado André! Consegui! Parabéns! Está magnifico! E a sua dica foi fantástica!’
’…!’
… conseguira voltar atrás… ao dia da batida.

AO ACORDAR

Foto de Gabriel Guerrero

Eu queria
olhar-te ao acordar
e descobrir
que correntes te trouxeram
a madrugada
     Eu queria
     contar as marés
     que encheram a tua noite 
          Identificar as algas
          que se mascaram com teus cabelos
               Abrir as conchas
               onde guardas teus segredos
                    Perceber as margens
                    de onde partem teus sonhos 
                         Desvendar o mar
                         onde desaguam teus desejos
                              e… se me acordasses
                              mergulhar em ti
                              para saciar a sede
                              do rio antes de chegar
                              ao mar.

terça-feira, 19 de maio de 2009

ABRO-TE AS MINHAS MÃOS

Foto de Ralf Stelander


Abro-te
as minhas mãos
para que leias
as linhas de sal
sulcadas
pela serenidade
da admiração

Abro-te
as minhas mãos
para que ouças
as melodias do sul
salgadas
pela inquietação
da espera

Jogo com as palavras
que não julgo
por ter julgado
que as palavras jogavam
e não jogo nem julgo
as palavras
que se abrem
em cada linha
em cada melodia

Abro-te
as minhas mãos
para que vejas
os sulcos de palavras
jogadas
sem regras
na contenção da emoção

ESCORREGO ATÉ AO RIO [rua da bica duarte belo, lisboa]


Subo a uma colina

inspiro

ganho fôlego

apanho balanço

desafio a ladeira

sobre a cidade

espraio meu olhar

escorrego

sobre os telhados

fecho os olhos

oiço uma guitarra

e mergulho no rio


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]


segunda-feira, 18 de maio de 2009

COM UM SUSPIRO

Foto de Jennifer S


Com um suspiro
corto a transparência
do mar
na areia
bordo soluços
de desejo
pelas asas
da noite
dispo o sonho
seco de palavras
abraço
teu corpo
para mentir
na tua pele
a ausência do amor

domingo, 17 de maio de 2009

QUE CANTAN LOS POETAS ANDALUCES DE AHORA?

A adolescência estava no seu fulgor. As canções de intervenção impregnavam o ar e consequentemente a irreverência própria da idade. Em Portugal, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Adriana Correia de Oliveira, Fausto, José Fanhais e outros mais podiam, então, ser ouvidos sem restrições. De Espanha ainda pouco nos chegava. Ainda íamos muito mais ao outro lado da fronteira comprar caramelos, do que eles vinham cá. Ainda estava longe a implantação, em território português, das grandes cadeias como a Zara ou a Massimo Dutti são agora exemplo.

Fruto daqueles sentimentos que irrompem no coração sem pedir autorização ou pensarem se devem, eu escrevia. Usando sem grandes virtuosismos a minha guitarra, vivia a ilusão de ser capaz de compor canções, baladas. Não me cansava de ouvir repetidamente este poema interpretado pelos Aguaviva que aqui, hoje, se reproduz. Comigo próprio sonhei algumas vezes a possibilidade de, um dia, ser capaz de criar algo assim. Não poderei assegurar mas, inconscientemente, talvez tenha começado aí a minha afinidade com o castelhano. 

Não sei quantos, se é que haverá alguém entre os que me visitam, se lembrarão de Que cantan los poetas andaluces de ahora. E o que cantarão, hoje, os Poetas Andaluzes de agora?

sábado, 16 de maio de 2009

DEFINIÇÃO DE TI

Foto de Bror Johansson

Dou por mim, inúmeras vezes, a tentar te definir. Quase sempre me perco em divagações que acabam por se dissipar no tempo imediato. Já aconteceu pensar ter encontrado a solução mas quando a começo a desenvolver percebo que afinal não será a adequada. Aconteceu relativamente a ‘coisas’ de que gosto ou careço. O ar de que preciso para respirar, mas será excessivo pois mesmo que o sinta necessitar, continuarei vivo sem te respirar. Ou o mar, onde gosto de mergulhar, ou simplesmente contemplar. Mas os mares são alguns e logo, como definição, oposto à tua unicidade. 

Hoje, pensei em algo para que ainda não encontrei ressalva: o Céu. O céu é uma presença quotidiana na minha vida. Todos os dias ele fica à distância duma janela, duma porta, duma rua, dum olhar. Não lhe toco, mas sei-o lá. Sempre. E não há dia da minha vida em que ele não exista. Não o lembre. Qual memória leve mas nunca descontínua. E se escurece é porque adormeço. Se fica cinzento é porque desapareces. Se nele se mostra o sol é porque te vi resplandecer. Se chove é porque choras. Se troveja é porque me feres. Se toca no mar é porque o amor mergulhou no desejo. Se se enche de estrelas é porque duas delas são o teu olhar a brilhar para mim. E se a saudade chega… corro à janela e olho-te! 

Só não sei onde encaixar as nossas palavras… talvez elas reflictam a impossibilidade dum terreno comunicar com o céu… era tão bom se tu o fosses… e eu te pudesse ver sempre que o desejasse.


sexta-feira, 15 de maio de 2009

FLORESTA DOS SONHOS

quadro de Jacek Yerka


São minúsculos. Parecem balões em patins. Ou melhor, sinais de interrogação sobre pontos rolantes. Circulam a uma velocidade estonteante por aqueles corredores de luz, nas catacumbas em forma de raízes do pensamento. São milhões incontáveis mas não chocam, não colidem entre si. Não evidenciam a existência de qualquer organização hierárquica definida. Porém, a sua comunicação é perfeita. Trocam, entre eles, ideias. Passam-nas em cadeia. Sabem sempre a quem. E mesmo quando um interlocutor a recusa, é com segurança que a outro se dirigem com o intuito de garantir que será essa a via para a corrente não se quebrar. Desistir é verbo que não sabem conjugar. Só quando a mensagem é entregue, retrocedem no seu percurso, assumindo primeiro o papel de receptores e logo em seguida de veículos de transporte dessas ideias. É impossível perceber como funciona o cérebro desses pequenos seres. De qualquer forma só operam em ambientes de luz, pois precisam de se sentirem constantemente iluminados.

Alguns parecem ter um estatuto especial pois podem ascender a salas existentes nos troncos da imaginação onde se abrem janelas que iluminam a floresta escura onde se implantaram. É, de certeza, a esse nível que as últimas análises se realizam, os últimos pormenores são definidos, os detalhes mais reais são retirados. Não existem conselhos de deliberação. Mais uma vez cada um tem as suas missões e tarefas extrema e claramente definidas e assumidas.

E no processo de ascensão, quando é atingido o nível do relógio mais alto, páginas aladas iniciam o voo rumo a destinatários previamente identificados. Partem em busca do sono dos justos. Ou daqueles que têm a felicidade de não se cristalizarem na razão e são capazes de sonhar acordados.


estas palavras foram inspiradas no quadro de Jacek Yerka, cuja obra descobri aqui

quinta-feira, 14 de maio de 2009

SE TU VIESSES VER-ME... [se tu viesses ver-me...]


As madeiras rangem queixumes de décadas por entre a densidade do silêncio, qual nevoeiro sobre o rio, numa manhã de Inverno sem chuva. Apesar de ser Primavera sinto o frio da tua ausência abraçar-me quando a tarde se vai. Lá fora, nas árvores, as folhas não se movem. O aroma das flores entra pela janela enquanto cozinho o prato de que sei gostares. Condimento-o como se espalhasse beijos na tua pele. Em monólogo, dialogo contigo como se tivesses acabado de chegar e esperasses pela bebida que te preparo. Mexo languidamente o preparado como se, com carinho, meus dedos passeassem pelos teus cabelos afagando tua nuca. Invento o cheiro do teu perfume quando entro na sala e me sento no chão, sobre o tapete onde fizemos amor pela última vez. Começo uma conversa com os livros. Sinto-me uma página a desejar ser folheada. Peço-lhes que me leiam um poema escrito por ti. Em cima do tampo da secretária repousa uma caneta sobre uma folha onde ensaiei palavras não terminadas. Ordeno-lhe que escreva a voz do meu coração, o céu dos meus pensamentos, para que um dia os leias. E penso ‘se tu viesses ver-me…’. Levanto-me, caminho até à porta, deixo a noite entrar. No alpendre, acendo a candeia para que… se vieres, a saudade te veja chegar.

[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

quarta-feira, 13 de maio de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?


Foto de Philip LePage

A fúria apoderou-se do seu acordar. Tropeçou num chinelo perdido no chão. Vociferou um qualquer impropério imperceptível. Abriu as portadas sem a certeza se seria para a claridade entrar, se para ver melhor. O sangue aquecia-lhe o furor e afastava discernimento ao pensar. Abriu a mensagem. Usou o número para realizar a chamada. Uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes… ‘Não acredito que tenha o atrevimento de não atender!’ pensou. Cada toque mais e a sua tempestade desmoronava. ‘Bom-dia.’, respondeu-lhe uma voz límpida e raiando uma calma de sol ao entardecer. ‘Bom-dia…’, respondeu não se reconhecendo no propósito. A sua intenção era afrontar o autor, percebia agora, das palavras que a vinham arrastando numa desordem involuntária. Inexplicavelmente refreou e respondeu num tom em que não se reconhecia. As palavras ausentaram-se. Uns instantes de silêncio pareceram uma eternidade perante a inércia do agir. Ouviu do outro lado ‘Que agradável… finalmente a voz complementa o olhar. Que bem o faz…’ Não sabia se havia de se enfurecer ou ameigar. Não! Tinha de acordar, de reagir. Não fora para conversar que marcara o número. ‘Ouça lá, quem quer que o senhor seja, o que pretende com esta perseguição? Quem se julga ser para se sentir no direito de me importunar? De onde o conheço para me perturbar os dias?’ Foi interrompida: ‘Porque não evitamos que o tempo fuja no vento?’ ‘O quê?’, perguntou-lhe. ‘Só pode ser um doido! Deixe-me paz! Ouviu?’ A resposta repetiu a serenidade: ‘Porque não combinamos uma conversa, para confirmarmos pensamentos e provar que os nossos olhares se podem cruzar sem ser por acção do vento…’ Antes da fúria lhe fazer desligar a chamada, só foi capaz de responder: ‘Nem pensar!’

RECADO

Foto de Moss

Dói a distância na incerteza da lembrança

      sinuosidade das horas roubada à
                                      persistência do sentimento

                   submergir no delírio ou evitar a queda

                   cansar de calar ou perguntar se
                                                              Esqueceste?

terça-feira, 12 de maio de 2009

MEMÓRIAS [máquina de escrever, fazenda murycana - paraty - brasil]


Naquele tempo não haviam outras memórias. Era em mim que escrevia tudo quanto precisava não esquecer, as memórias dos seus dias. Foi nas minhas teclas que descarregou todas as emoções. Eu… aprendi a senti-lo e a sentir-me. 

Não respeitava horários e forçava-me a não tê-los. Escrevia quando queria ou quando as palavras lho pediam. Não me respeitava o ritmo, nem sabia o que eram cadências de respiração. Conheci o seu âmago melhor do que ele próprio. 

Dias houveram em que se sentava, frente a mim, com uma formalidade pouco comum. Pensava durante o tempo necessário para se arrumar e escolhia-me as teclas com uma delicadeza de quem se dirige a uma qualquer individualidade com a obrigatoriedade de respeitar. Por força da rotina habituei-me a adivinhar as palavras que escreveria, como se obedecessem a uma regra, à qual teimava não fugir. 

Quando se fazia acompanhar dum copo… a escrita iria ser difícil. Ficava tempos infindos a olhar-me. Bebia. Não escolhia as teclas. Carregava ao acaso e voltava a beber. Sentia-lhe um deserto de ideias molhado no álcool que o fazia esquecer-se da sua própria secura de intenções. Para mim eram momentos de descanso, mas também de ansiedade. Na expectativa de que dissesse algo, sofrendo por lhe experimentar o vazio. 

Houveram também dias de tempestade em que a sua raiva me magoava. Escrevia a um ritmo animal, como se não pensasse e tivesse de descarregar rios de cólera. Chegava a carregar-me em duas ou três teclas em simultâneo. Escrevia. Arrancava-me as folhas que amachucava e rasgava. Penetrava-me com novas folhas brancas que enchia de novo de rasuras, correcções e muita dor. Deixava-me exausta e completamente desabitada. Sabia que descarregara as suas emoções, mas não perfumara as páginas escritas. 

Noutras alturas senti-me sua confidente. Olhava-me como se o fizesse para o interior dum coração. Passava, ternamente, os dedos ao longo das minhas teclas como se pedisse ajuda para começar. Cheguei a provar o sabor das suas lágrimas. Escrevia lentamente como se as palavras lhe pesassem ou lhe fosse difícil desprender-se delas. Como se as largar fosse uma necessidade mas, simultaneamente, uma dúvida sobre a utilidade de o fazer. Depois descansava o olhar sobre o que havia escrito e, presente, partia em viagens cujo destino só ele conheceria. 

Também existiu Verão no que escreveu em mim. Chegava desapertado com um sorriso rasgando-lhe o peito. Inventava, ironizava, ria. Atacava com malícia as teclas. Sabia por onde ia e com certeza de chegar. Havia calor nos seus dedos e tornava-me cúmplice das suas frases com ‘segundos sentidos’. Levantava-se, retirava de mim a folha, sorria uma vez mais, dava uns passos e voltava a olhar-me como se tentasse confirmar se o acompanhava no seu humor. 

Mas os dias de que guardo mais gratas lembranças são daqueles que escrevia em mim arrancando raízes do coração. Escrevia com a transparência, fluidez e lucidez do rio correndo no leito, com a certeza de chegar à foz. As palavras brotavam-lhe com a coordenação dum bando voando no céu azul. Os sentimentos nasciam-lhe com as tonalidades dum prado em plena Primavera. Transmitia o fulgor da luz varrendo a sombra. E, quase sempre, terminava com a eloquência dum pôr-do-sol colorindo o final de tarde e introduzindo o prólogo dum novo amanhã. Nesses dias, quando se levantava, parecia-me sentir um coração tal era o que ficava a ecoar em mim, enquanto ele se distanciava. 

Um dia fui substituída… como tudo na vida… como a noite substitui o dia, a escuridão a claridade, a alegria a tristeza, como a saciedade toma o lugar da sede, a lembrança o do esquecimento e até a morte o da vida. Desde então vou sendo deixada onde menos incomode. Cada vez mais distante das memórias. E faltam-me mãos para escrever as minhas próprias memórias.


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]