As águas do rio estavam revoltas quando, a meio da ponte, parou para contemplar aquela ilha que o obrigava a uma bifurcação momentânea antes de se tornar, outra vez único, um pouco mais à frente. Percorreu o que faltava da ponte, atravessou para o outro lado da avenida e, pela praça, embrenhou-se no labirinto de travessas. As ruas eram apertadas e a sua relação totalmente anárquica. Era devido saber ler muito bem as linhas da palma de uma mão para adivinhar a que beco iria dar aquela travessa, em que praça terminaria, ou começava, a rua que se lhe seguia.
Escondia-se uma luminosidade de final de dia, servindo de prólogo à noite. Era, mesmo assim, possível adivinhar que as fachadas de grande parte daquelas casas eram banhadas por sombra. Seriam muito curtos os períodos do dia em que o sol as acariciava. Considerando a sua estreiteza, o sol devia percorrê-las a uma velocidade estonteante em busca de uma ou outra praça onde se espreguiçar e deixar respirar a sua luz por mais tempo.
Caminhou ao acaso perdendo-se naquelas ruas onde as janelas de um prédio pareciam segredar às varandas do edifício em frente. Atraído por uma melodia que lhe parecia familiar entrou numa viela esconsa. O som nascia numa pequena loja de discos que reproduzia um tema de Ludovico Einaudi. Ao lado existia uma frutaria e logo em seguida uma charcutaria. Fingiu ficar a apreciar as frutas, os legumes, os queijos, enchidos e massas frescas, para se deliciar mais um pouco com aquela música que lhe entrava pelo coração.
Deambulou por mais umas ruas passando em frente ao cinema do bairro. Três fortes vigas de madeira apoiavam a fachada do prédio na tentativa de evitar, ou adiar a sua derrocada. Os cartazes anunciavam uma reposição de La vita è bella. Não haveria outro filme que melhor sugerisse a crença que tinha na vida. A noite começava a cair e, mesmo com o céu limpo, a humidade de Novembro fazia-se sentir no corpo. Numa pequena praça mesas de madeira alinhavam-se numa formatura de esplanada. Bancos, também de madeira, repousavam, com os apoios virados para a lua, nos tampos das mesas. Duas candeias acesas iluminavam a escuridão que começava a abraçar o final de tarde. Ao lado das mesas, cestas altas enchiam-se de laranjas.
Àquela hora a esplanada já não funcionava. Tirou um banco de cima de uma das mesas e sentou-se estrategicamente voltado para um prédio, no qual um vidro rectangular rasgava a altura de dois andares. Um bloco sólido de degraus era perceptível através dessa janela ao alto. Adivinhavam-se luzes baixas aquecendo um ambiente modernista no interior daquele edifício com o peso de longas décadas de vida. Ficou discretamente observando. Seguro de que esperava por algo que iria acontecer. Pouco tempo depois uma mulher desceu os degraus. Vestia uma t-shirt e umas calças de ganga. Denunciava que a temperatura lá dentro contrastava com o frio que se começava a fazer sentir na rua. Por instantes desapareceu do seu horizonte visual para surgir, logo em seguida, numa janela muito menor à esquerda. Via apenas o seu perfil. Adivinhava que estaria a preparar algo num balcão de cozinha. Permaneceu mais um pouco. Contemplou-a por minutos. Como sempre fazia quando necessitava de acreditar que um dia voltá-la-ia a olhar olhos nos olhos e dizer-lhe que não a esquecera.
Levantou-se. Puxou a gola do sobretudo para cima. Improvisou um caminho de regresso diferente. Eram poucos os candeeiros que iluminavam as ruas. Foi intencionalmente dar a uma praça que parecia enorme para a dimensão das pequenas e estreitas ruas que a circundavam. Entrou numa igreja que dominava, quase na totalidade, uma das larguras da praça. No altar, o sacristão ordenava algumas coisas para os ofícios do dia seguinte. Ao vê-lo entrar, olhou intencionalmente para ele e para o relógio de pulso a lembrá-lo de que se aproximava a hora de fechar.
Caminhou em direcção à imagem de Santo António, com o Menino ao colo, e certificou que continuava estrategicamente colocado o pedido que lhe deixara. Saiu e enfrentou o frio.
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