sábado, 9 de maio de 2009

AO FUNDO DO CORREDOR

A largura do corredor aumentava ou diminuía conforme a minha determinação em avançar ou recuar. As portas que fui encontrando tinham identificações diversas: dúvida, confiança, renúncia, compromisso, paixão, ausência, traição, cumplicidade, denúncia… dependente da minha convicção, a claridade regulava a sua intensidade.

Abri a porta dos séculos e atravessei a fronteira do tempo. Um espaço lúgubre impregnado dum cheiro a ébano abria-se diante dos meus olhos. Estantes dobravam a minha altura, mesas intermináveis ocupavam um espaço infinito no horizonte iluminado. Livros, tratados, manuscritos, mapas… num desalinho arrumado pela sabedoria do conhecimento. Num cadeirão, em frente a uma secretária, na penumbra, um homem divorciava-se, numa folha de papel, de ideias vividas em comum com o tempo. A cada passo renunciava na minha vontade e denunciava a dúvida da exactidão do caminho. Sob meus pés rangia a tentação do retrocesso.

‘Porque hesitas? Procura um lugar onde te sentares!’, a pergunta ordenação saíra da boca do sábio e, com discrição, olhei para trás para tentar perceber a quem se dirigia. ‘É contigo que falo. E nada precisas de dizer pois sei ao que vens!’, uma vez mais duvidei se era comigo que falava pois nem eu próprio estava seguro do que ali me levara. Procurei um lugar, tomei um dos volumes em redor e arrisquei perguntar: ‘Conhece todos os escritos que por aqui existem?’ ‘Eu não conheço! Mas o tempo é meu companheiro e orientador. Foi ele que os coleccionou. Que os arrumou, os elegeu, os abriu e fechou mais vezes.’, recebi como resposta. ‘O tempo?!? … e como fala com ele?’, voltei a questionar receoso de o ousar. Furtando-se à resposta assegurou: ‘Podes ler todos os livros, decifrar os manuscritos mais antigos, procurar em todos os mapas, rever todos os tratados e não encontrarás resposta para a tua questão!’ Arrisquei: ‘Mas como está tão certo do que aqui me trouxe?’ ‘Ouvi-o nos teus passos!’

Optei pelo silêncio sem saber se deveria permanecer, se me levantar e sair, se procurar não sei bem o quê naquela imensidão de volumes. ‘Sabes que quase nada é eterno? Que nada é seguro? Não vem nos livros mas é uma verdade que o homem não lembra. Esquece que aquilo que hoje tem, amanhã poderá já não ter. Assume que uma vez conquistado dificilmente irá perder. E não olha para o lado, não olha para o espelho, não olha para o hoje, porque sem saber acredita que amanhã só haverá que acrescentar. Tem alguma dificuldade em processar a diminuição!’ Mal tentara perceber qual o objectivo daquelas palavras quando prosseguiu: ‘Uma vez vitorioso na conquista, o homem arruma os títulos, desembainha a espada, descansa as pernas e abraça uma inércia da qual apenas desperta quando, das caves do seu esqueleto, acorda novo desejo de conquista!’ Admiti perceber a mensagem.

Ia-me levantar quando interrompeu: ‘Mas não era isto que procuravas ouvir. Também não o dizem os livros, mas os seus corações estão sempre à espera de ser reconhecidos. Porém, muitas vezes não o querem admitir. E se hoje te o pedem, amanhã recusarão aceitar que o fizeram. E se o evocares, incorrerás na possibilidade de enrolarem um novelo do qual dificilmente irás encontrar uma extremidade. E se não ofereceres, ferir-lhes-ás a susceptibilidade. E, sem que dês por isso, em breve pesará sobre ti um turbilhão de dúvidas, desconfianças e responsabilidades que te dificultarão o teu próprio entendimento. E apenas porque não poderão sentir o esquecimento. Precisam de vida diária, como tu necessitas e, provavelmente, nem questionas.’

‘Se me disse que nada disto vinha nos escritos… como o sabe?’, perguntei quase sem me ouvir. ‘Porque os que, como tu, me visitam são os peões do tempo, do conhecimento. São as suas experiências que traduzem a percepção do real. Mas aqui não se fazem leis, pelo que não deverás assumir o que te disse como regra. Usa-o como ferramenta para trilhares o caminho que tu próprio decidirás. Agora vai! … e obrigado!’ ‘Obrigado?’, perguntei estupefacto. ‘Sim! Quando aqui entraste, e até chegares a este local, foste enriquecendo o conhecimento que aqui pulsa, com as tuas dúvidas, as tuas convicções, as tuas alegrias, as tuas confianças, as tuas paixões. Serão elas que ajudarão quem vier a seguir a ti.’

Balbuciei um insonoro obrigado e saí. Não sei se pela porta, se pela janela, se pelo sótão. Não sei se em direcção a sul ou a norte. Não sei se na direcção do céu, em busca duma estrela, se na direcção do horizonte, em busca duma cor, se na direcção do oceano, em busca duma ilha, se na direcção duma estrofe em busca duma rima…

6 comentários:

helenabranco.poet@gmail.com disse...

Os seus PASSOS conduzem-me a vontade de lhe sugerir escrever livros, pois aqui percorro trilhos onde a exigência de si próprio e a naturalidade escorrem , na imagética das metáforas, revelando um espírito onde a arte de pensar se afirma...
as suas palavras mesmo as mais recônditas são de uma leveza singular...

ABRAÇO para PASSOS

mariab disse...

gosto dessa ideia de que cada experiência individual enriquece uma espécie de "banco de emoções". e que isso enriquece todos.
este é definitivamente um texto para pensar e bem pensado.
beijos

Ana disse...

Um caminho que enriquece o conhecimento e ajuda quem vier a seguir, só pode ser em direcção às estrelas.
Um excelente texto. Uma agradável surpresa encontrar os teus passos.
Beijo.

Alexandra disse...

Uma divagação que mais parece o conteúdo de uma meditação...

O processo de auto-conhecimento está impregnado de medo(s), de se(s)de tentações de retrocesso, nas quais na maioria das vezes caímos, para em seguida nos levantarmos e seguirmos. Não encontramos as respostas em livros porque a vida é um livro que cada um de nós escreve. Encontramos as respostas em nós mesmos... se bem que é necessária coragem para olhar para o nosso mundo"interior". Nem sempre se encontram coisas boas...

Contudo, os nossos conteúdos internos e experiências de vida são ferramentas imprescindíveis para gerir e aprender, sendo que, de facto, só através dessa aprendizagem poderemos ajudar quem a seguir a nós vier.

Pas[ç]sos, sei que para se chegar a este nível é necessário muito trabalho. Os meus parabéns e continue! :)

Marta disse...

Há caminhos e divagações que nos levam longe, dentro de nós!

abraço

sonja valentina disse...

a par da vida, a amais fantástica das viagens... esta do auto-conhecimento onde nem sempre é tarefa fácil seguir em frente com a certeza de ir no caminho certo... mas assim é a nossa condição.