sexta-feira, 27 de novembro de 2009

CONTEMPLAÇÃO

Foto de Gwenn


No limite do horizonte,
onde a tua contemplação
se fundia em assombro,
o rebentar de cada vaga.

Na altivez da sua crista
nasciam em espuma
gomos duma tarde
banhada de felicidade.

Descobri no teu olhar
o voo dos peixes,
asas em cardume
num céu de água.

No furor do mar
descobri a serenidade
que acalma a corrente
do contínuo ribombar.

Quando o sol derreteu na água
inundaram-na estrelas
de origens indefinidas;
caminharam-nos passos
numa navegação
ao encontro da lua.


quinta-feira, 26 de novembro de 2009

NA SOMBRA DUM MOMENTO

Foto de Codrin Lupei


Nos teus lábios
seguro o tempo,
o mesmo que me foge
no vazio entre os dedos
quando as mãos se despegam.

No teu olhar
seguro as marés
de palavras repetidas
pelo eco dos ventos
que sopram no peito.

Em cada abraço
seguro o rio
paisagem desaguada
nos corpos que se fundem
em estuários do amor.

Solta-se o ritmo ordeiro
dos corações cavalgantes
por planícies que raiam,
no perfume que fica nas horas,
no tempo que se cola na pele,
à distância dum intervalo
interregno dum encontro
na sombra dum momento
numa mesma margem...


quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS


Corria… não para chegar. Antes num regresso. Sem caminho. Como se nunca quisesse ter saído. Seguramente. Sem dever ter partido. O labirinto era um terreno plano, árido, sem paredes, nem obstáculos. Mas é impossível apagar o caminho que já se percorreu. Era esse o desafio. Era essa a impossibilidade. Apagar o que nunca poderia ter sido trilhado.

Dei um salto. Estava escuro. Passei a mão pelo rosto. Estava molhado. E frio. Os olhos ainda estavam fechados. Tentei localizar-me. Procurei o interruptor do candeeiro. Em cima da pequena mesa-de-cabeceira, a luz verde do relógio digital marcava 3:41. Era madrugada. Fora mais um pesadelo. Percebi então. Só mais um. A somar a tantos outros.

Quanto mais tentava, conscientemente, fugir daquela noite, mais percebia o quanto ela pesava no inconsciente. E era sempre em fugas que ela se traduzia. Quanto mais fugia dela e me esforçava por a deixar para trás, mais ela se mostrava uma evasão impossível. Um destino sem saída. Um rumo sem mapa.

O coração abrandara as batidas. Levantei-me. Deambulei até ao lavatório. Molhei o rosto já molhado. Respirei fundo. Engoli um pouco de água. Regressei à cama na expectativa de recuperar o sono. Faltavam pouco menos de três horas para acordar.


terça-feira, 24 de novembro de 2009

O ANO DO PENSAMENTO MÁGICO

Foto recolhida aqui


Somos convidados a ouvir um recado dirigido a todos. As memórias de respostas sempre questionáveis duma experiência de vida que um dia chegará a qualquer um de nós. Ainda que as características possam variar, o conteúdo será sempre similar. As verdades irrefutáveis do adiamento em aceitar a partida definitiva. As mentiras que nos contamos para escamotear a realidade que está ao alcance das mãos. A eterna esperança de podermos manipular o passado se o futuro nos revelar as razões do ontem. O futuro que nunca planeámos, porque o amor faz-se de vida.

Um texto verdadeiro, particularmente bonito, escrito por Joan Didion, que Diogo Infante doou à magnitude artística e humana de Eunice Muñoz. Uma sucessão de parágrafos na voz de uma mulher que, tal como Judite de Sousa referiu no programa ‘Grande Entrevista’ do último dia 19, parece não ter idade. A mulher Eunice Muñoz demonstra ao longo de setenta minutos a tenacidade duma personalidade que, mesmo nos momentos menos moldáveis, assume a vida como algo que se controla. A actriz Eunice Muñoz demonstra porque é, e será, uma Senhora do teatro português. Cada pose, cada intenção, cada gesto, cada expressão estão minuciosamente estudados, escolhidos e trabalhados para que nós, os que nos sentamos a apreciá-la, sejamos induzidos a crer estarmos a ouvir a própria Joan Didion, e não a actriz.

Os parágrafos da história que corre nas veias de Joan Didion são acompanhadas por um jogo sublime de beleza, estabelecido entre peças abstractas dum cenário de Catarina Amaro, e diferentes níveis de abertura da cortina negra. A prova, mais uma vez, de que a simplicidade resulta quando a arte é clara e permite respirar, através dela, as sensibilidades de quem se senta numa plateia para ser surpreendido pela magia dos dotados. Referência ainda para a música original de João Gil. Tão só um pormenor mais de bom gosto que completa, tal como o apontamento final de vídeo realizado por Pedro Macedo, o encanto duma noite a desfrutar prazer.

O ano do pensamento mágico está em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, até ao dia 20 de Dezembro. Entre 7 e 31 de Janeiro subirá ao palco do Teatro Nacional S. João, no Porto.

Numa primeira abordagem à sinopse ou críticas sobre O ano do pensamento mágico, poder-se-á criar a convicção de se ir assistir a um trabalho dramático, comovente, dorido. Não foi, para mim, essa a realidade. Acolhi-o como uma demonstração de como a vida pode ser valiosa se o amor a habitar. Pois mesmo quando ela nos obriga a resumir os que amamos a uma moldura, situada no lugar nobre da secretária… dir-lhes-emos repetidamente ‘amo-te mais do que apenas mais um dia!'


segunda-feira, 23 de novembro de 2009

NOS TEUS DEDOS


Procuro entre teus dedos
o compasso da melodia
que quero compor;
ritmos de quem canta
sem ser compositor.

É o ritmo de teu coração
que procuro nas tuas mãos.
É em busca do tempo certo
que as abraço,
para que me sintas
na afinação demandada
nos batimentos que ouço
nos teus dedos.

E na harmonia de encontrar
tuas mãos nas minhas
fica-me a certeza de cantar
a felicidade de ouvir
o teu ritmo em mim.


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

MANTO DE PALAVRAS

Foto de Vernon Trent


Estendeste-me um manto de palavras
que colhi como se fossem pétalas
duma flor a quem queria conhecer o cheiro.
Eram tuas, senti-as minhas.
Não as conhecia, sabia-lhes o sabor,
nunca as lera, conhecia-lhes as letras.
Caminhei entre significados,
descobri intenções.
De algumas fiz pele
de outras, véu de aconchego.
Deitei-me nelas e afaguei-me…
Bebia-as e traguei-lhes o calor,
olhei-as e extrai-lhes a cor,
sussurrei-as e copiei-lhes o som…

… cheguei à tua boca.
… nos teus lábios depositei
a doença
que as tuas palavras
me curam.


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

FERNANDO TORDO NO TEATRO DA TRINDADE

Foto recolhida aqui


Seis da tarde. A cidade realiza o sprint final de mais um dia. Corre no regresso preparando a noite. Às vezes chegam palavras, chegam recados. Quando as palavras chegaram senti-as… ainda que não tivesse lhes atribuído o recado que hoje lhes saboreio. Quando elas chegaram, lembrei-me o muito que respeitava e admirava as canções dum senhor que ontem fui ouvir cantar ao Teatro da Trindade.

Um concerto curto de sessenta minutos. Pouco mais que meia dúzia de canções intercaladas por muita aprazível conversa. Muitas palavras em que as suas memórias nos levaram a simbólicas homenagens a homens como José Carlos Ary dos Santos, José Calvário, Raul Solnado, João Maria Tudela, Pedro Osório, Carlos Mendes… Palavras que nos mostraram as emoções pessoais do homem que aos sessenta e um anos se comove com o neto que a sua filha lhe ofereceu, ou com o prémio Saramago com que o seu filho foi recentemente distinguido. Palavras que nos revelaram histórias do nascimento de algumas das suas canções. Canções que elegeu para cantar ontem. Foi o prazer de lembrar a existência de João e Joana, ou Adeus Tristeza. Foi a oportunidade de trautear letras que percebi a memória não ter esquecido.

Entre o muito que lembrou e revelou, transmitiu, de novo, a facilidade com que o monstro Ary dos Santos pegava nas composições que lhe levava e as musicava com letras que são poemas dos mais bonitos escritos na língua portuguesa. Letras de canções que têm cheiro e cor, em que nos afundamos com o prazer de quem se sente abraçado pela arte da escrita.

De algumas dessas histórias tento aqui reproduzir a ocorrida quando, após terem concluído Cavalo à Solta, Fernando Tordo e José Carlos Ary dos Santos se estendiam por largo tempo à procura dum título para a canção. No meio de muitas divagações, indecisões, conjecturas e propostas, eis que João Maria Tudela, que acompanhara nesse dia Fernando Tordo, timidamente se intromete e lhes diz algo como: “Desculpem! Mas como é que dois animais que acabam de fazer uma canção como esta não vêem que o título só pode ser Cavalo à Solta?”

Na vida há momentos em que nos chegam palavras que nos mergulham num sorriso enorme. De felicidade!


quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS

Foto de Benoit Michelot


Sentada em frente ao estirador sentia-se capaz de contemplar o Universo. Aquele era o reino da sua segurança. A aridez de intenções que lhe desertificava a rotina do dia-a-dia, ali tornava-se mar, oceano imenso, profundo, incomensurável. Transfigurava-se em frente àquela prancheta. As ideias transformavam-se fauna sucedânea em ciclos reprodutivos.

Nas suas mãos, o carvão riscava com a liberdade dos pensamentos soprados por ventos de inspiração. Os esquiços tomavam forma esbatendo-se, alongando-se, desfigurando-se em traços, em contornos e, de novo, em figuras. Em frente àquele estirador não tinha incertezas. Sentia-se suficientemente distante das águas paradas em que mergulhava ao sair para a rua e entregar-se ao anonimato da multidão.

Ainda que ali se realizasse… Mesmo que ali se reconhecesse… Só no horário profissional ali se entregava. Recusava-se ignorar que lá fora, também uma fracção do mundo lhe pertencia. Por método, por rotina ou talvez por crença que um dia chegaria, em que consigo se cruzaria uma história diferente. Uma chuva diluviana que se entranharia pelas fendas abertas no deserto da espera.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

NA ESPERANÇA DO ESMORECIMENTO

Foto de Takashi


Quando o sol inicia a curva descendente rumo ao horizonte, o dia ilude-se na convicção de ainda poder ser especial.

Mesmo que já estejam distantes os fulgores do raiar do astro rei, o dia sente energia suficiente para ainda poder ser único.

Já em pleno ocaso, quando esmorecem os últimos laivos de pujança, o dia renova a esperança de que ainda poderá atrair.

E quando a noite é soberana, e já as sombras de sol são discretas lembranças apagadas na artificialidade dos néones, o dia deita-se com a certeza de que, afinal, a vida só começa amanhã.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

VENTOS DE DESPEDIDA

Foto de Chiara


Quando o gume da incerteza
se crava na face da rocha
abre-se uma fenda de Inverno
na carne que não sangra.
Questionam-se nebulosas do olhar
chovendo lágrimas de dúvidas,
gotas turvas na tristeza
de saber irrecuperável a partida.
Desabam expressões sem rosto
sobre tantas páginas lidas,
pedaços de breu arrancados ao céu
na desilusão dos dedos sem carícias.
Seca a saliva por engolir
na boca lacrada pela noite,
sobra maresia no aroma do coração
que se despede do fogo por acender.


domingo, 15 de novembro de 2009

SENTIMENTOS

Foto de Cile Bailey


Escorrem pelas palavras
sentimentos apartados do peito
infindáveis segredos desvendados
no cíclico despertar da vida.
Soltam-se sem saber dizer
a cor do canto que os envolve
vestem a poesia das letras
em paisagens que temem descrever.
Ouvem-se em suspiros indomáveis
libertos no limiar do sonho
são sorrisos rasgados de verdade
que o coração é incapaz de segurar.
Espalham-se na eloquência do desejo
ouvindo-se antes de chegar,
adivinham-se na vontade de ser
eco dissolvido num olhar.


sábado, 14 de novembro de 2009

ASCENSÃO

Foto de Mike Deman


Nas águas perdidas da tua força
percorro o retorno sem endereço,
sinto no vento da tua noite
a ansiedade que me sopra no peito.
No fogo derretido da tua vontade
acendo a crença sem receios,
sinto no rio da tua incitação
o caudal que corre na minha escrita.
Na percepção da tua tristeza disfarçada
infundo raízes de auto-estima,
sinto na luminosidade do teu sorrir
a direcção projectada no futuro.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

ERA UMA VEZ O AMOR...

Foto de Jonas Göthlin


No princípio da verdade havia um túnel onde o amor quis entrar. Fez uma pausa. Ponderou. E ao dar os primeiros passos sentiu-se agarrado. Parou. Olhou para trás e percebeu que era a dúvida que o detinha. Olhou-a para tentar ler-lhe a intenção quando percebeu que a razão estava por perto apontando-lhe na direcção duma luz encandeante. Era a tentação. Logo em seguida a razão indicou-lhe uma rampa com uma superfície deslizante que descia em plano bem íngreme até que se prolongava por uma subida lançada em deslumbrante velocidade, mas que não permitia ver o que existia para além do cume. Disse-lhe ser a paixão. Mostrou-lhe ainda uma vereda onde existiam roseirais com lágrimas em muitas das pétalas. Para entrar nela era necessário transpor um portão onde se podia ler a palavra ciúme. Sentiu-se confuso, mas antes que o expressasse a razão segredou-lhe ser sua tarefa obrigar o pensamento. O amor perguntou-lhe então o que era uma outra área vedada por sorrisos, onde as plantações pareciam arrumadas por alturas. Explicou-lhe a razão ser um terreno onde se semeavam vontades para fazer crescer certezas. Só quem ali deixava as suas sementes se decidira a entrar no túnel. O amor assim fez antes de reentrar no túnel da verdade. Aos poucos foi ajustando a sensibilidade à luminosidade. Primeiro inexistente. Depois sentiu-se enleado por uma nebulosa que se abria na escuridão. Até que um ínfimo ponto pareceu definir o horizonte. Lentamente esse pedaço de luz foi crescendo até iluminar por completo o túnel da verdade. O amor percebeu que estava próximo do destino. Parou quando à sua frente já só descortinava uma larga, vasta e serena imensidão de água. Olhou para trás. A outra extremidade do túnel já não era perceptível. A dúvida, a tentação e outros mais caminhos haviam ficado do outro lado. A verdade não acabava ali, mas só a sombra da razão se arrastava atrás de si. Abriu os braços, fechou os olhos e deixou-se cair no lago da confiança.


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

DIZ-ME QUE OS OLHARES NÃO FALAM

Foto de Marc Vreenegoor


Diz-me que os olhares não falam
quando a ocasião os surpreende
num cruzamento inesperado,
em que a agnosia do idioma os prende
numa explicação inaudível
traduzida numa tentação irrecusável.

Diz-me que os olhares não falam
quando se abrigam num recato ensaiado
de quem saboreia o prazer
ao sentir-se observado,
mas rejeita mostrar intenção de se oferecer,
fechando-se sobre si mesmo,
dobrando a percepção do que sobre si se foca.

Diz-me que os olhares não falam
quando na discreta procura
encontram o que pensavam poder evitar,
mas secretamente desejavam desafiar.

Diz-me que os olhares não falam
quando voluntariamente não se desprendem,
mesmo ignorando que vocabulário usar.

Diz-me que os olhares não falam
quando o teu e o meu se reencontram
.… se entendem na sintonia,
dizendo o que as palavras calam
e só os corações não silenciam.


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS

Foto de Benoit Michelot


Os primeiros passos da manhã levavam-me até em frente ao espelho onde, ainda sem me ver, começaria a remoção dos pêlos que diariamente se repõem após cada dezena diária de minutos gastos para os eliminar.

Acordara com aquela sensação de que se me sentasse ao teclado, as palavras se despejariam dum segredo construído no sonho nocturno. Tentava colher palavras soltas, ideias desgarradas, para juntar em constelações a construir. Tentava que a inspiração não me fugisse por entre a água com que molhava a cara.

No espelho, os olhos pareciam ser relevo desadequado. Àquela hora era impossível perceber se guardavam algo do que tivessem contemplado durante o sono.

Continuei os preparos matinais sempre com o inquietante sentimento que desperdiçaria a oportunidade de deixar as palavras se sucederem. Era certo que após a primeira, outras viriam. Reforçava aquela sensação de que as secava, por mais que as procurasse acender, na água com que fazia a espuma, a qual me preparava o rosto para a passagem da lâmina.
Estaria a castrar as palavras em cada pêlo rasurado?

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O POETA OLHOU AS MÃOS

Foto de Angela Vicedomini


O poeta olhou as mãos
reflexos dum espelho
onde a vida se escondia.
Embaciavam-se as certezas
em aguaceiros de dúvidas,
intermitência duma luz
esquecida da sua firmeza.
Esboçava-se em tracejado
a linha, antes, contínua.
Desfocagem de imagens
sobrepostas à nitidez do rumo.
O poeta olhou as mãos
e nublou-se-lhe a visão.
Guardou-as.
… até que a monção
sopre num novo olhar.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

NA INCÓGNITA DO DESCONFORTO

Foto de Chuck Gallegos


Precipitam-se os sorrisos
em marés ansiadas;
mais do que avaliadas,
aproveitadas.
Ondas sem sal
navegadas na espuma.
Ossadas sem esqueleto
procurando a verticalidade
ausente da carne,
perecendo na fadiga
do presente adiado
no incógnito futuro.
Suspiros engolidos
no encontro desesperado
com o vazio,
realidade iludida
na força da procura
ao desencontro
da surpresa.


domingo, 8 de novembro de 2009

PANCADA[S]

Foto de Rui Palha


O fim chegou com aquela pancada seca. A interrupção abrupta que corta. O ponto final que não se escreve. O som que determina o início do silêncio ou o terminar do diálogo.

Pensou “Todos os fins são assim! Sejam imprevistos ou imagináveis, sejam surpresas ou programados, sejam espontâneos ou agendados… todos os fins são um ponto final.”

Restava-lhe, então, sair à rua e agradecer o sol ou a chuva que fizesse, como uma oferta por estar viva. Sabia que iria chorar fosse razão a alegria do sol ou a tristeza da chuva.

Enquanto caminhava anónima na multidão, cruzou-se com uma criança que de mão dada à mãe, lhe sorriu, viu um casal de namorados que se abraçava, passou por um mendigo que lhe desejou boa-noite…

Foi nesse instante que se apercebeu, por entre as nuvens, que o sol descia sobre o mar. O dia terminava. Chegava ao fim. Porém não se ouvira a pancada seca que marcava o final. O sol escondia-se dando lugar à noite. O dia dissolvia-se nas luzes artificiais. Era uma despedida suave. Como num filme, quando após a cena derradeira, a música prolonga no desenrolar dos que intervieram na edificação da película, o final para além daquela imagem conclusiva.

Caminhava. As luzes iniciavam a iluminação do dia que se apagava. Alguns pingos de chuva caíam indisciplinados tocando-lhe a pele. Percebeu que uma nova acção se poderia iniciar. Em breve, ou talvez não. A sua actuação não tinha terminado. Uma série ritmada de pancadas marcariam o novo começo.

sábado, 7 de novembro de 2009

INCÓMODO

Foto de Calisto

Incomoda-me a cabeça que não é minha
mas a que pertenço…
há como um toldo universal que sombreia
a independência do querer.
Incomodam-me os pensamentos consentâneos
cujas unidades se individualizam…
soam milhares de megafones
como se pudessem ser instrumentos num recital.
Incomoda-me a vontade colectiva
que não sabe como eleger o rumo…
determinam-se os caminhos
antes de definir o destino.
Incomoda-me a decisão acordada
na opinião dos desejos…
teoria das cedências
imposta em negociações sem mercado.
Incomoda-me esta dor que não sinto.
Apenas me angústia.
Desconforto que não é meu.
Mas me domina.
Que não tolero.
Mas se impõe…

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

ALMA QUIETA

Foto de Simona Carli


Tenho a alma quieta
naquela planície onde o tempo
adia a decisão dos dias.
A vontade são folhas
arrancadas pela decisão do Outono,
abandonadas sob passos anónimos.
Adormeceu em segredos da lua
a espontaneidade dos sorrisos
liberta na cadência dos corações.
Guardo o sabor dos abraços
em lagares de ternura esquecida
pela vindima de prazeres desgarrados.
Sobram as palavras inadiáveis
que planto em areais sem horizonte
onde a Primavera me revelará
a inquietude das velas brancas
rasgando a placitude do tempo
com o desejo de aportar no mar
que ressuscitará a minha praia.


quinta-feira, 5 de novembro de 2009

PARA VOCÊS

Foto de Nicole Goggins


O tempo passa. Será que cresce? O tempo passou por vós, como por mim. Vocês crescem… eu não me sinto maior. O meu colo parece ser pequeno para o vosso tamanho. O tempo roubou-me esta sensação de ser porto onde procuraram abrigo. O tempo passa e com ele cresce a vossa confiança para navegarem em rota própria. Deixam de precisar-me como bússola para a vossa jornada. O tempo passa e com ele cresce o tempo que fazem exclusivamente vosso. Enquanto o tempo passa adequam-se os rumos de quem cresce, a quem se orgulha de descobrir novas formas de vos pertencer, de vos iluminar, de ser eterna raiz quando a água e o alimento vos faltam. O tempo passa e o lar cresce em dimensão física e espiritual, esgaçam-se laços, estreitam-se segredos. Na presença estruturam-se alicerces inquantificáveis. Dispensa-se a quantificação, como não se mede o volume do mar, o qual independentemente das marés não se extingue; como não se mesura o ar que inspiramos, inconscientemente, para viver; como não se avalia a distância que nos separa do fim pois é fatal a sua chegada. O tempo passa, vocês crescem. Um dia trará o momento do vosso voo partir por outros céus. Então, os regressos serão breves. O tempo passa, mas ainda não o suficiente para que esse instante fosse já. Esse instante foi precipitado. Precocemente antecipado. O tempo passa e sinto crescer o espaço do colo que foi vosso. O tempo passa e esse vazio cresce. Prematuramente…

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS

Foto de Benoit Michelot


Era habitual a sua primeira fuga matinal terminar naquela mesa. Fugia da solidão que a madrugada semeava em cada manhã, para se encontrar consigo mesma naquela paragem onde uma ‘meia-de-leite’ e uma torrada lhe entreabriam o dia, por sussurros de conversas alheias que se difundiam e os pensamentos que se tinham de organizar.

Por regra sentava-se na mesma mesa, de costas viradas para a entrada. Não aguardava, pois era o pormenor da paisagem que não se destacava perante qualquer olhar, tal era a sua integração na mesma. Virava-se para dentro de si mesma como se a limitação do seu próprio espaço fosse uma lei não transmutável.

Depois de pagar, com a quantia que habitualmente já tinha em valor exacto, arrumava entre as suas ideias palavras soltas recolhidas nas oratórias que não lhe eram dirigidas. Partia para o dia com a decisão de quem avança convictamente. Levava consigo pedaços de outros. Ninguéns que sem saber lhe semeavam sentires para um novo futuro.


terça-feira, 3 de novembro de 2009

PEDIDO

Foto de Flo


Procuro o dia a cada noite que adormeço
um cheiro a terra molhada esquecido pela solidão,
atravesso o corredor cinzento do desencanto,
é apenas uma madrugada só que me abraça.

Enxugo gotas secas pela voz que não ouço,
afectos roucos trucidados no som da descrença,
prendem-se os sonhos na goma da surdez,
sinfonia não estreada por falta de compasso.

Abandono o palco defronte da plateia deserta,
sossego o maestro, o actor e o poeta.

Não se escreva, hoje, o que não pôde ser dito!
Não se encene, agora, o que não se soube exprimir!
Esqueçam-se as pautas onde a melodia se extingue!

Lá fora está escuro e só o silêncio se ouve…
Apague-se a ribalta para que não se adivinhem os passos!

Chego à janela, deixo entrar o vento e peço:
“Pousa teu olhar na minha pele…
despe-me a saudade!”

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

NUM DIA DE CÉU CINZENTO

Foto de Paolo Giudici


Plano neste céu aberto
onde me in.compreendo,
embalo-me em voos
presos ao regresso,
toldam-se pensamentos
na intermitência da certeza,
coagula-se a decisão
no alvorecer da dúvida,
removem-se sorrisos
sob a sombra da inquietude,
apartam-se corpos
no destilar dum abraço,
refugia-se a boca
na renúncia da declaração,
rege-se a saudade
na metamorfose da distância.

E o que resta?
Onde permaneço?

…nesta vontade de adivinhar o amanhã
com a certeza do agora,
um vazio para governar
na ansiedade de ser soberano
fixando a felicidade com estacas
em terreno fértil de carícias
onde o amor se reinicia
na margem de cada despedida.


domingo, 1 de novembro de 2009

PARA CRER

Foto de Carl Quick


Eu vou entrar pelo teu poema
e colher palavra a palavra;
de cada verso fazer uma vereda
que desembocará em ti;
mergulharei em cada imagem
para provar a tua corrente,
agarrarei cada som
e afinar-me-ei pela tua melodia.

Ao chegar diante de teu olhar
entrarei no teu querer,
contemplarei o teu sentir,
tocar-me-ás como quem lê;
arrepiarei minha pele
nos lábios por abrir,
acostarei meu corpo
nas mãos por entrelaçar;

Mas no primeiro cruzamento
desviarei o teu rumo,
da tua vontade farei crença
que regerá minha ansiedade;
tornar-me-ei cativo da tua prosa
para permanecer na tua pena
e quando fizeres ponto final
serei alfabeto da tua escrita.