quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

SAUDADE

© RamonaG


A saudade é um navio onde me embarcas, no cais das despedidas. Navego por horas dum oceano sem margens, expectando ver no céu um voo da tua presença. E só quando o teu sorriso descubro nos degraus subidos à procura da minha proa, avisto novo porto onde a saudade se atraca até que nova partida se anuncie…


quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

NO TEU CAMINHO PARA MIM

© Barbara Orienti


Sento-me à beira do cais
onde os pensamentos se vazam.
Imagino-te atravessando a rua
onde te ofereço morada.
Entras sem bater,
pedes-me que te siga os passos.
Visto de lembranças
os gestos que nos acariciam,
a verdade dum silêncio
que traduzimos sem palavras.
Nas tuas horas
descubro o meu tempo,
a minha mão confessa nas tuas
a impossibilidade da solidão.
Na sombra da saudade
caem madeixas de suspiros
pousadas sobre meus ombros
pelas marcas da tua paixão.
Deixamos que os corpos dancem
num balanço vagueado
de dois peitos estreitados
sob uma melodia incógnita.
Demoro-me na vida dum olhar
que em ti se prende
e os teus lábios chamam-me
na propagação dum beijo.


terça-feira, 29 de dezembro de 2009

NO CINZENTO DO DIA

Foto de Marcus Björkman


Paro no silêncio,
habito a tua ausência,
destapo segredos
sorvidos no ciclo das horas.
Visto-me de lembranças
roubadas ao sossego dos corpos,
navios ancorados
na nudez de abraços.
Dividem-nos fronteiras
onde apalpo fragilidades,
escoro cordas de ânimo
entre receios engolidos na dor…
mas a alegria traja-se de medo.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

UM NOVO PRESENTE

Foto de m.j. arcanjo


A implacabilidade do tempo oferece-nos constantes transformações, arrasta-nos com a sua força. Aquilo que fomos, depressa deixamos de ser e rapidamente na sua régua caminhamos dum extremo ao outro. Repentinamente seremos aquilo que os outros já nos foram. Quando se é criança a inocente sofreguidão só nos permite olhar em frente. Tudo se afigura como conquista. Sob a inflexibilidade do tempo temos necessidade de parar, de olhar para trás. Aí identificamos espaços por preencher, aí detectamos faltas irrevogáveis. Aí agarramo-nos às âncoras do presente. Procuramos uma mão e atrevemo-nos a acreditar no futuro. Aí… temos esperança de voltarmos a ser… um novo hoje.


TALVEZ UM DIA...

Foto de Ivan Tonev


Talvez um dia
a terra derramada
sobre as palavras que escrevo
se evapore.
Talvez nesse dia
o sol aqueça
as cicatrizes dessas palavras
que o esquecimento queimou.
Talvez nesse dia
a memória acorde
e o passado se lembre
do prazer dos meus dedos
percorrendo a tua pele.
Talvez nesse dia
a sede recupere
a vontade insaciável
que o dilúvio
fez apagar.
Talvez nesse dia
as palavras redescubram a leitura
cegada pela intemporalidade
do cansaço.
Talvez um dia
as palavras se vistam de mim
e permaneçam
… no teu olhar.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

NOITE DE NATAL


A noite entranha-se na cama onde os lençóis se banham na humidade fria exterior às paredes. Estranho este vazio que toma conta do meu tempo, que inunda o meu espaço, que me amordaça as emoções, que me aprisiona o raciocínio. Tento libertar-me destes limos que se agarram à inércia de não viver. Tento respirar sobre estes cobertores dum caminho que não quero percorrer. Não me encontro no presente, substituto dum passado feito para esquecer e demasiado longínquo de outro que é preferível não lembrar por ser irrecuperável. É urgente abrir a porta do amanhã e acreditar que há uma mão à espera, uns braços ansiosos de mim, um olhar ofegante, uma vida despida pedindo que a vista com o meu ser. É urgente transpor esta fronteira do sono, entrar no sonho e correr para o futuro. Talvez lá… se celebre o Natal!


quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O SOL ILUMINAVA SEM AQUECER

Foto recolhida aqui


O sol iluminava a manhã fria de Inverno. Só uns gatos se cruzaram com os passos que desciam em direcção ao rio por entre árvores que, espontaneamente, se haviam decorado para o Natal, antecipado em apenas alguns dias. O frio que o sol não conseguia disfarçar desertificara as margens do rio. Nas ruas apenas moravam as sombras dos inanimados que o sol iluminava sem aquecer. As palavras desafiavam-se em mergulhos curtos na baixa profundidade das águas, corriam ao encontro dos rápidos que as traziam até por perto. O hoje vestia os espaços onde o ontem terá tantas histórias por contar. Também a minha história passava por ali em pegadas de origens que quase desconheço, mas a que sei pertencer. Imiscuía-me por entre descrições a que pertences e por onde me levas em recordações narradas a que acrescento adivinhação. Sobre a ponte, o sol iluminava sem aquecer, projectando no curso do rio a silhueta dum abraço, arrastando-o num percurso a desenhar… em direcção à vida.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

NAS ASAS DO FASCÍNIO [(IN)DISCRETAMENTE]


Lembro-me de passar, de mão dada com meu pai, junto aos degraus de acesso àquela porta azul que marcava presença pela sua imponência. Os meus poucos centímetros acima do metro de altura, só permitiam que o olhar contemplasse bem acima do meu horizonte. Os oito degraus que se subiam para a ela chegar, ainda mais me faziam crer que aquela porta seria a entrada, se não do céu, de algum corredor que lhe serviria de antecâmara. Em muitos desses passeios com meu pai, tive a tentação de subir os degraus e chegar mais perto dela.

Seguramente porque me sentia olhá-la com tanta curiosidade, o meu pai, um dia, perguntou-me o que descobrira eu de tão fascinante naquela porta. Respondi-lhe que a sua grandeza, a sua altura, a sua cor e um ponto dourado brilhante por onde parecia sair luz. Perguntei a meu pai quem morava para lá daquela porta. Respondeu-me que só uns seres desistentes do mundo entravam naquele reino. Pedi-lhe que me explicasse melhor, mas largando-me a mão, bateu-me carinhosamente com o punho fechado no topo da cabeça. Percebi que estava a colocar um ponto final na conversa.

A curiosidade de saber qual a realidade aberta por aquela porta, não se extinguia dos meus pensamentos. Nunca, nas vezes que por ali passámos, vimos alguém transpor aquela porta. Nunca a vimos aberta. As janelas que ficavam perto eram altas demais para que pudesse perceber o que os vidros e umas cortinas opacas escondiam.

Num outro passeio, algum tempo mais tarde, fui surpreendido pela decisão do meu pai. Subimos os degraus e acercámo-nos da porta. Transpostos os primeiros obstáculos, ela, agora, parecia-me mais acessível. Mas mesmo assim imponente. Colocando o indicador direito à frente dos lábios, meu pai abortou a pergunta que me preparava para lhe apresentar. Apontando, em seguida, para aquilo que me parecera, ao longe, o tal ponto dourado brilhante, disse-me em sussurro: “Por ali entram os que desistem de voar no mundo. Só prescindido das asas conseguem penetrar. Ao transpor aquela pequena entrada, transformam-se em luz. Demasiado intensa para qualquer de nós poder olhar…”

Ouvi-o com atenção e fascínio. A minha imaginação infantil partiu em busca de seres inventados, de cenários inverosímeis, de descobertas inexoráveis. Voltamos a descer a curta escadaria e tive uma estranha sensação de que um foco de luz me era apontado às costas. O tempo de descida daqueles oito degraus prolongou-se por muitos anos, tal foi o encanto experimentado pela revelação do meu pai.

Cresci. Com a passagem da idade desvaneceu-se aquela sensação transcendente que as palavras do meu pai haviam despertado. Porém nunca as esqueceria. O aspecto da porta foi envelhecendo como se fosse todos os dias usada. O azul acinzentara-se. Só o tal ponto dourado se mantinha imaculadamente brilhante. Porque nunca registei qualquer sinal de vida por ali, a minha curiosidade manteve-se acesa.

Já adolescente, ao passar por ali num bando de colegas e amigos, subitamente o meu coração parou. Estou certo que o sangue terá mesmo estancado, tal o gelo que me invadiu. Senti perder toda a cor. A porta estava entreaberta… uma fracção de tempo que não consegui avaliar, mediou até que um vulto fizesse sombra para o exterior, pela fresta aberta que prosseguia inalterável. Mais lívido terei ficado quando vi sair, por aquela porta que ao longo dos anos alimentara grande parte da minha capacidade de sonhar, um corpo feminino. Era de uma jovem mais bela do que uma noite de estrelas. O vestido que trazia deixava perceber as formas esculturais do corpo. No topo do seu tronco assentava a cabeça vestida por cabelos cor de mel, os quais ornamentavam um rosto celestial. As palavras de meu pai ecoaram na memória do tempo. Concluí que afinal há anjos que decidem regressar à vida.


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

MAIS LOGO

foto de mmind


Quando mais logo
chegar a hora da despedida
senta-te no degrau
depois do abraço
e deixa o tempo
passar à frente.

Ele que corra
na vertigem
de girar o mundo
e esqueça aqueles
que se quedam
na existência das horas.

Escreve comigo
mais pegadas de nós
enquanto os dedos imprimem
a permanência da certeza.

Deixa que os lábios se molhem
em rios de desejo oculto.
Escondamo-nos da saudade
ludibriando-lhe o percurso previsto,
que os olhares se prendam
num elo de leitura por traduzir,
mas que se sintam oceano mergulhado
na imensidão de vocábulos por inventar.

Mais logo
quando a hora marcar
o tempo da despedida
não desças para o degrau da ausência,
cobre-nos com aquela manta de amor
que as nossas mãos tecem de carícias
e deixa que o perfume se prolongue
no futuro.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

NO PARAPEITO DO TEU OLHAR

Foto de dusan

No teu olhar abres uma janela por onde me pedes para espreitar o mar. Abre-se em toda a sua imensidão numa onda transbordante de querer, saída do teu peito. Olho-o e sinto-lhe as tuas pulsações, em cada vaga que se desenha sob o céu de tempestade que arrasta fogo de emoções, pelas avenidas onde as estrelas se intimidam em brilhar. O horizonte desenha-se à distância dum sonho. Não sei se o agarro pela latitude do oceano, se pela longitude do teu olhar. Funde-se na minha pele o abraço indizível em que a ternura dos corpos adocica o sal espalhado pela espuma no areal das margens. Corre-me nas mãos o curso das marés onde fundeias teus dedos ao largo da paixão. Suspiro. Espreito o amanhã. E no parapeito do teu olhar jaz intacta a tentação de nos deixarmos abraçar pelo escuro iluminado de águas por navegar.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

NO CORRER DAS HORAS


Gasto
as palavras
nesta fuga
que de mim faço
para em ti
permanecer.

Pequenos
grãos de mel,
escritos
por enxames
de emoções,
que ouso
desejar
ver derreter
em ti.

Sei que
o coração
se tornará
mar árido
se
o teu olhar
não desaguar
em mim
sementes de estrelas,
com as quais
hoje
me fazes
arder
os dias.


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A TUA VOZ

Foto de Barbara


A tua voz
é uma porta que se abre para amanhã
quando na ombreira,
a ontem
me prendo.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

MÁXIMA II

Foto de Jure Kravanja


Amar é esta impossibilidade a que me prendo de fazer o hoje, eterno!

domingo, 6 de dezembro de 2009

PÁGINAS DUM COMBOIO


Era grande a torrente que de todas as vezes deixava guardada. Uma vontade calada, entupida pela incerteza, pela dúvida, pelo receio da negação, por acreditar que era um sonho demasiado alto para si. Aproveitava o prazer da conversa sem se aperceber do tempo que lhe era concedido, oferecido, intencionalmente partilhado. Esquecia, a cada vez, o que o conduzia, ou tentava dar-lhe outro significado. Adaptava-se à postura formal que julgava ser a mais adequada. E a cada despedida agradecia a uma entidade superior o privilégio que tivera. Regressava a si e tentava convencer-se de que deveria estar grato, mas que o céu não lhe pertencia, que seria com os pés na terra que deveria caminhar. A ficção era matéria para uma outra vida, para outras vidas que não a sua.

Foi assim que lhe propôs aquela viagem, naquele dia. Sem se questionar porque teria sido aceite. Sem analisar mais profundamente o que poderia viver do outro lado. Para si era certo que o sentimento era só seu e impossível de partilhar. Como combinado encontraram-se à porta da estação. Como sempre acontecia chegaram ambos antes da hora marcada. O destino fora previamente definido e as passagens antecipadamente adquiridas. Entraram na carruagem e sentaram-se lado a lado. Aguardaram o horário de partida percorrendo notícias no jornal e revista publicados nesse dia. Os momentos de silêncio não eram usuais, sentiu alguma ansiedade em redor da forma como haveria de quebrar aquele. Reassumia a formalidade da personalidade decidida. Afastava a tentação do que sentia. Sempre que conversavam olhava-a bem nos olhos, sem reparar que estavam fixos nos seus. Eram vastos. O branco brilhante de sorriso abraçava aquela pequena castanha amadurecida, no centro. Deliciava-se naquele frente a frente vivo.

Pousou o braço esquerdo no apoio que separava os dois lugares. Não se apercebera que o direito dela já por lá estava. As suas peles tocaram-se. Ia afastar o braço quando um assalto interior lho mandou permanecer. Sentiu que as peles não se tocavam. Encostavam-se. Toda a sua atenção concentrou-se no absorver de sentidos. Escassos segundos em que quis apreender um aglomerado de sensações, na ilusão de as guardar, de as poder reviver, de as reavivar. Foi com a mão direita que ela lhe chamou a atenção para um pormenor na paisagem. Os braços separaram-se. E no silêncio do seu interior quis congelar a sensibilidade experimentada. Havia uma parte de si a ouvi-la e outra a tentar que as suas palavras lhe tocassem como a sua pele lhe havia feito.

Mais uns quilómetros de ideias trocadas, conversas continuadas e ao oferecer-lhe pastilhas na palma da mão estendida, os dedos que escolheram o doce ofertado arrastaram-se pelas falanges dos seus dedos e, antes de pegarem na guloseima, abriram-se de novo, recuaram, forçaram espaço entre os seus, entrelaçaram-se e abraçaram a sua mão. Baixou o olhar num tempo em que necessitou de confirmar consigo próprio se estava ou não acordado. Levantou o olhar e descobriu um esboço de sorriso nos lábios dela, um rascunho de ternura no seu olhar. Deixou seus dedos corresponderem no abraço e o silêncio tomar conta da troca de olhares. As pálpebras dela desceram e a boca avançou na sua direcção. Sem que palavras o pedissem levou seus lábios ao encontro dos dela, sem questionar a verdade do que estava a acontecer, a certeza do que estava a sentir. Secos, os lábios humedeceram-se. O comboio assinalava o final da sua marcha.

Fechou o livro com o som seco de embate das páginas e colocou-o na mala de mão. Levantou-se em direcção à bagageira, tirou a mala de viagem e dirigiu-se à porta. Quando descia os degraus para pisar o cais de chegada, pensava para consigo própria: “Até eu poderia escrever um livro assim… poderia ser eu a protagonista duma estória assim.”


Passos com olhares, ao invés de ampliações, são palavras trazidas pela inspiração e posteriormente complementadas pela objectiva do olhar da Sonja.


sábado, 5 de dezembro de 2009

NAQUELA RUA HÁ UMA ESQUINA

Foto de Bror Johansson


Naquela rua há uma esquina
onde a viagem termina
e o sonho começa.
Adivinham-se olhares
nos passos por percorrer,
guardam-se palavras
dispensadas de dizer.
Quando te pressinto
sob o contra-luz da tarde,
no rio, os navios
anunciam o desejo
de ancorar no cais.
Traduzes num sorriso
o desejo dum abraço
e o caminho encurta-se
nessa rua sem fundo.
No horizonte dum beijo,
os corpos dominam
os olhares que se fecham
na moldura enlaçada
pelo murmúrio do reencontro.
Entrega-se a tarde
no princípio duma frase
prolongada no pôr-do-sol
onde as palavras se repetem
no eco das mãos e dos lábios.
...
Quando a noite adormece
a cidade devolve-nos
aos ruídos do silêncio
em que o desejo cresce.
E ao dobrares a esquina
dessa rua terminada,
o sonho adia-se
na sombra da saudade.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

RECADO II

Foto de Ursula I Abresch


Agarra-me com a força com que as pétalas o fazem à sépala!

E, se um dia, tiveres de me deixar cair
que o faças em terreno fértil fixo à tua raiz,
para que eu possa, de novo, fecundar com amor
os ramos da tua árvore.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

DE SEGREDO EM SEGREDO

Foto de Justin Hofman


De segredo em segredo
levas-me pela mão
até ao cabo da memória,
onde os pensamentos
se esqueceram de lembrar.

Ali, naquele extremo
onde a terra desistiu
de invadir o mar,
e as tuas recordações
são vagas
rebentando na areia
que abres ao meu olhar.

Nem sempre a vida
tem a persistência do oceano,
e as ondas cansam-se
de rebentar na praia
desistente de olhar o mar.

É difícil voltar ao pélago
em demanda duma ilha
perdida na imensidão
sob um céu de nuvens.

Paro!
… entre o caminho errante
e a descoberta dos rumos.

Olho-te!
… nesse espelho de água
estilhaçado no voo das gaivotas.

Mergulho!
… num abraço de maresia
suplicando que o transborde.

Sou istmo deste querer
que os corpos ainda separam
mas os corações desejam.