quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

NAS ASAS DO FASCÍNIO [(IN)DISCRETAMENTE]


Lembro-me de passar, de mão dada com meu pai, junto aos degraus de acesso àquela porta azul que marcava presença pela sua imponência. Os meus poucos centímetros acima do metro de altura, só permitiam que o olhar contemplasse bem acima do meu horizonte. Os oito degraus que se subiam para a ela chegar, ainda mais me faziam crer que aquela porta seria a entrada, se não do céu, de algum corredor que lhe serviria de antecâmara. Em muitos desses passeios com meu pai, tive a tentação de subir os degraus e chegar mais perto dela.

Seguramente porque me sentia olhá-la com tanta curiosidade, o meu pai, um dia, perguntou-me o que descobrira eu de tão fascinante naquela porta. Respondi-lhe que a sua grandeza, a sua altura, a sua cor e um ponto dourado brilhante por onde parecia sair luz. Perguntei a meu pai quem morava para lá daquela porta. Respondeu-me que só uns seres desistentes do mundo entravam naquele reino. Pedi-lhe que me explicasse melhor, mas largando-me a mão, bateu-me carinhosamente com o punho fechado no topo da cabeça. Percebi que estava a colocar um ponto final na conversa.

A curiosidade de saber qual a realidade aberta por aquela porta, não se extinguia dos meus pensamentos. Nunca, nas vezes que por ali passámos, vimos alguém transpor aquela porta. Nunca a vimos aberta. As janelas que ficavam perto eram altas demais para que pudesse perceber o que os vidros e umas cortinas opacas escondiam.

Num outro passeio, algum tempo mais tarde, fui surpreendido pela decisão do meu pai. Subimos os degraus e acercámo-nos da porta. Transpostos os primeiros obstáculos, ela, agora, parecia-me mais acessível. Mas mesmo assim imponente. Colocando o indicador direito à frente dos lábios, meu pai abortou a pergunta que me preparava para lhe apresentar. Apontando, em seguida, para aquilo que me parecera, ao longe, o tal ponto dourado brilhante, disse-me em sussurro: “Por ali entram os que desistem de voar no mundo. Só prescindido das asas conseguem penetrar. Ao transpor aquela pequena entrada, transformam-se em luz. Demasiado intensa para qualquer de nós poder olhar…”

Ouvi-o com atenção e fascínio. A minha imaginação infantil partiu em busca de seres inventados, de cenários inverosímeis, de descobertas inexoráveis. Voltamos a descer a curta escadaria e tive uma estranha sensação de que um foco de luz me era apontado às costas. O tempo de descida daqueles oito degraus prolongou-se por muitos anos, tal foi o encanto experimentado pela revelação do meu pai.

Cresci. Com a passagem da idade desvaneceu-se aquela sensação transcendente que as palavras do meu pai haviam despertado. Porém nunca as esqueceria. O aspecto da porta foi envelhecendo como se fosse todos os dias usada. O azul acinzentara-se. Só o tal ponto dourado se mantinha imaculadamente brilhante. Porque nunca registei qualquer sinal de vida por ali, a minha curiosidade manteve-se acesa.

Já adolescente, ao passar por ali num bando de colegas e amigos, subitamente o meu coração parou. Estou certo que o sangue terá mesmo estancado, tal o gelo que me invadiu. Senti perder toda a cor. A porta estava entreaberta… uma fracção de tempo que não consegui avaliar, mediou até que um vulto fizesse sombra para o exterior, pela fresta aberta que prosseguia inalterável. Mais lívido terei ficado quando vi sair, por aquela porta que ao longo dos anos alimentara grande parte da minha capacidade de sonhar, um corpo feminino. Era de uma jovem mais bela do que uma noite de estrelas. O vestido que trazia deixava perceber as formas esculturais do corpo. No topo do seu tronco assentava a cabeça vestida por cabelos cor de mel, os quais ornamentavam um rosto celestial. As palavras de meu pai ecoaram na memória do tempo. Concluí que afinal há anjos que decidem regressar à vida.


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

7 comentários:

Charlotte disse...

Que história fascinante...eu também acredito em anjos!

Carla disse...

e felizmente há quem tenha arte de escrita para nos falar dessas aparições angelicais
beijo

Anónimo disse...

Não me levaste bem para onde eu estava a ir. O final foi uma surpresa.

Unknown disse...

bonita história de anjos que, por vezes decidem deixar de voar para se transformar em luz, outras vezes decidem regressar à vida...

metamorfoses,
aparições de anjos, a luz segurada por uma porta mágica,
é preciso acreditar...

Vera de Vilhena disse...

Gostei da prosa poética misturada com o suspense. O final surpreende e enternece.
Votos de um Natal feliz, inundado de anjos e de coisas belas. E que a curiosidade e o espanto estejam sempre ao pé da sua porta.

C. disse...

Linnndoooo!!!

Anónimo disse...

FELIZ NATAL!!!!!!!!!!!