quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

SAUDADE

© RamonaG


A saudade é um navio onde me embarcas, no cais das despedidas. Navego por horas dum oceano sem margens, expectando ver no céu um voo da tua presença. E só quando o teu sorriso descubro nos degraus subidos à procura da minha proa, avisto novo porto onde a saudade se atraca até que nova partida se anuncie…


quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

NO TEU CAMINHO PARA MIM

© Barbara Orienti


Sento-me à beira do cais
onde os pensamentos se vazam.
Imagino-te atravessando a rua
onde te ofereço morada.
Entras sem bater,
pedes-me que te siga os passos.
Visto de lembranças
os gestos que nos acariciam,
a verdade dum silêncio
que traduzimos sem palavras.
Nas tuas horas
descubro o meu tempo,
a minha mão confessa nas tuas
a impossibilidade da solidão.
Na sombra da saudade
caem madeixas de suspiros
pousadas sobre meus ombros
pelas marcas da tua paixão.
Deixamos que os corpos dancem
num balanço vagueado
de dois peitos estreitados
sob uma melodia incógnita.
Demoro-me na vida dum olhar
que em ti se prende
e os teus lábios chamam-me
na propagação dum beijo.


terça-feira, 29 de dezembro de 2009

NO CINZENTO DO DIA

Foto de Marcus Björkman


Paro no silêncio,
habito a tua ausência,
destapo segredos
sorvidos no ciclo das horas.
Visto-me de lembranças
roubadas ao sossego dos corpos,
navios ancorados
na nudez de abraços.
Dividem-nos fronteiras
onde apalpo fragilidades,
escoro cordas de ânimo
entre receios engolidos na dor…
mas a alegria traja-se de medo.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

UM NOVO PRESENTE

Foto de m.j. arcanjo


A implacabilidade do tempo oferece-nos constantes transformações, arrasta-nos com a sua força. Aquilo que fomos, depressa deixamos de ser e rapidamente na sua régua caminhamos dum extremo ao outro. Repentinamente seremos aquilo que os outros já nos foram. Quando se é criança a inocente sofreguidão só nos permite olhar em frente. Tudo se afigura como conquista. Sob a inflexibilidade do tempo temos necessidade de parar, de olhar para trás. Aí identificamos espaços por preencher, aí detectamos faltas irrevogáveis. Aí agarramo-nos às âncoras do presente. Procuramos uma mão e atrevemo-nos a acreditar no futuro. Aí… temos esperança de voltarmos a ser… um novo hoje.


TALVEZ UM DIA...

Foto de Ivan Tonev


Talvez um dia
a terra derramada
sobre as palavras que escrevo
se evapore.
Talvez nesse dia
o sol aqueça
as cicatrizes dessas palavras
que o esquecimento queimou.
Talvez nesse dia
a memória acorde
e o passado se lembre
do prazer dos meus dedos
percorrendo a tua pele.
Talvez nesse dia
a sede recupere
a vontade insaciável
que o dilúvio
fez apagar.
Talvez nesse dia
as palavras redescubram a leitura
cegada pela intemporalidade
do cansaço.
Talvez um dia
as palavras se vistam de mim
e permaneçam
… no teu olhar.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

NOITE DE NATAL


A noite entranha-se na cama onde os lençóis se banham na humidade fria exterior às paredes. Estranho este vazio que toma conta do meu tempo, que inunda o meu espaço, que me amordaça as emoções, que me aprisiona o raciocínio. Tento libertar-me destes limos que se agarram à inércia de não viver. Tento respirar sobre estes cobertores dum caminho que não quero percorrer. Não me encontro no presente, substituto dum passado feito para esquecer e demasiado longínquo de outro que é preferível não lembrar por ser irrecuperável. É urgente abrir a porta do amanhã e acreditar que há uma mão à espera, uns braços ansiosos de mim, um olhar ofegante, uma vida despida pedindo que a vista com o meu ser. É urgente transpor esta fronteira do sono, entrar no sonho e correr para o futuro. Talvez lá… se celebre o Natal!


quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O SOL ILUMINAVA SEM AQUECER

Foto recolhida aqui


O sol iluminava a manhã fria de Inverno. Só uns gatos se cruzaram com os passos que desciam em direcção ao rio por entre árvores que, espontaneamente, se haviam decorado para o Natal, antecipado em apenas alguns dias. O frio que o sol não conseguia disfarçar desertificara as margens do rio. Nas ruas apenas moravam as sombras dos inanimados que o sol iluminava sem aquecer. As palavras desafiavam-se em mergulhos curtos na baixa profundidade das águas, corriam ao encontro dos rápidos que as traziam até por perto. O hoje vestia os espaços onde o ontem terá tantas histórias por contar. Também a minha história passava por ali em pegadas de origens que quase desconheço, mas a que sei pertencer. Imiscuía-me por entre descrições a que pertences e por onde me levas em recordações narradas a que acrescento adivinhação. Sobre a ponte, o sol iluminava sem aquecer, projectando no curso do rio a silhueta dum abraço, arrastando-o num percurso a desenhar… em direcção à vida.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

NAS ASAS DO FASCÍNIO [(IN)DISCRETAMENTE]


Lembro-me de passar, de mão dada com meu pai, junto aos degraus de acesso àquela porta azul que marcava presença pela sua imponência. Os meus poucos centímetros acima do metro de altura, só permitiam que o olhar contemplasse bem acima do meu horizonte. Os oito degraus que se subiam para a ela chegar, ainda mais me faziam crer que aquela porta seria a entrada, se não do céu, de algum corredor que lhe serviria de antecâmara. Em muitos desses passeios com meu pai, tive a tentação de subir os degraus e chegar mais perto dela.

Seguramente porque me sentia olhá-la com tanta curiosidade, o meu pai, um dia, perguntou-me o que descobrira eu de tão fascinante naquela porta. Respondi-lhe que a sua grandeza, a sua altura, a sua cor e um ponto dourado brilhante por onde parecia sair luz. Perguntei a meu pai quem morava para lá daquela porta. Respondeu-me que só uns seres desistentes do mundo entravam naquele reino. Pedi-lhe que me explicasse melhor, mas largando-me a mão, bateu-me carinhosamente com o punho fechado no topo da cabeça. Percebi que estava a colocar um ponto final na conversa.

A curiosidade de saber qual a realidade aberta por aquela porta, não se extinguia dos meus pensamentos. Nunca, nas vezes que por ali passámos, vimos alguém transpor aquela porta. Nunca a vimos aberta. As janelas que ficavam perto eram altas demais para que pudesse perceber o que os vidros e umas cortinas opacas escondiam.

Num outro passeio, algum tempo mais tarde, fui surpreendido pela decisão do meu pai. Subimos os degraus e acercámo-nos da porta. Transpostos os primeiros obstáculos, ela, agora, parecia-me mais acessível. Mas mesmo assim imponente. Colocando o indicador direito à frente dos lábios, meu pai abortou a pergunta que me preparava para lhe apresentar. Apontando, em seguida, para aquilo que me parecera, ao longe, o tal ponto dourado brilhante, disse-me em sussurro: “Por ali entram os que desistem de voar no mundo. Só prescindido das asas conseguem penetrar. Ao transpor aquela pequena entrada, transformam-se em luz. Demasiado intensa para qualquer de nós poder olhar…”

Ouvi-o com atenção e fascínio. A minha imaginação infantil partiu em busca de seres inventados, de cenários inverosímeis, de descobertas inexoráveis. Voltamos a descer a curta escadaria e tive uma estranha sensação de que um foco de luz me era apontado às costas. O tempo de descida daqueles oito degraus prolongou-se por muitos anos, tal foi o encanto experimentado pela revelação do meu pai.

Cresci. Com a passagem da idade desvaneceu-se aquela sensação transcendente que as palavras do meu pai haviam despertado. Porém nunca as esqueceria. O aspecto da porta foi envelhecendo como se fosse todos os dias usada. O azul acinzentara-se. Só o tal ponto dourado se mantinha imaculadamente brilhante. Porque nunca registei qualquer sinal de vida por ali, a minha curiosidade manteve-se acesa.

Já adolescente, ao passar por ali num bando de colegas e amigos, subitamente o meu coração parou. Estou certo que o sangue terá mesmo estancado, tal o gelo que me invadiu. Senti perder toda a cor. A porta estava entreaberta… uma fracção de tempo que não consegui avaliar, mediou até que um vulto fizesse sombra para o exterior, pela fresta aberta que prosseguia inalterável. Mais lívido terei ficado quando vi sair, por aquela porta que ao longo dos anos alimentara grande parte da minha capacidade de sonhar, um corpo feminino. Era de uma jovem mais bela do que uma noite de estrelas. O vestido que trazia deixava perceber as formas esculturais do corpo. No topo do seu tronco assentava a cabeça vestida por cabelos cor de mel, os quais ornamentavam um rosto celestial. As palavras de meu pai ecoaram na memória do tempo. Concluí que afinal há anjos que decidem regressar à vida.


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

MAIS LOGO

foto de mmind


Quando mais logo
chegar a hora da despedida
senta-te no degrau
depois do abraço
e deixa o tempo
passar à frente.

Ele que corra
na vertigem
de girar o mundo
e esqueça aqueles
que se quedam
na existência das horas.

Escreve comigo
mais pegadas de nós
enquanto os dedos imprimem
a permanência da certeza.

Deixa que os lábios se molhem
em rios de desejo oculto.
Escondamo-nos da saudade
ludibriando-lhe o percurso previsto,
que os olhares se prendam
num elo de leitura por traduzir,
mas que se sintam oceano mergulhado
na imensidão de vocábulos por inventar.

Mais logo
quando a hora marcar
o tempo da despedida
não desças para o degrau da ausência,
cobre-nos com aquela manta de amor
que as nossas mãos tecem de carícias
e deixa que o perfume se prolongue
no futuro.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

NO PARAPEITO DO TEU OLHAR

Foto de dusan

No teu olhar abres uma janela por onde me pedes para espreitar o mar. Abre-se em toda a sua imensidão numa onda transbordante de querer, saída do teu peito. Olho-o e sinto-lhe as tuas pulsações, em cada vaga que se desenha sob o céu de tempestade que arrasta fogo de emoções, pelas avenidas onde as estrelas se intimidam em brilhar. O horizonte desenha-se à distância dum sonho. Não sei se o agarro pela latitude do oceano, se pela longitude do teu olhar. Funde-se na minha pele o abraço indizível em que a ternura dos corpos adocica o sal espalhado pela espuma no areal das margens. Corre-me nas mãos o curso das marés onde fundeias teus dedos ao largo da paixão. Suspiro. Espreito o amanhã. E no parapeito do teu olhar jaz intacta a tentação de nos deixarmos abraçar pelo escuro iluminado de águas por navegar.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

NO CORRER DAS HORAS


Gasto
as palavras
nesta fuga
que de mim faço
para em ti
permanecer.

Pequenos
grãos de mel,
escritos
por enxames
de emoções,
que ouso
desejar
ver derreter
em ti.

Sei que
o coração
se tornará
mar árido
se
o teu olhar
não desaguar
em mim
sementes de estrelas,
com as quais
hoje
me fazes
arder
os dias.


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A TUA VOZ

Foto de Barbara


A tua voz
é uma porta que se abre para amanhã
quando na ombreira,
a ontem
me prendo.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

MÁXIMA II

Foto de Jure Kravanja


Amar é esta impossibilidade a que me prendo de fazer o hoje, eterno!

domingo, 6 de dezembro de 2009

PÁGINAS DUM COMBOIO


Era grande a torrente que de todas as vezes deixava guardada. Uma vontade calada, entupida pela incerteza, pela dúvida, pelo receio da negação, por acreditar que era um sonho demasiado alto para si. Aproveitava o prazer da conversa sem se aperceber do tempo que lhe era concedido, oferecido, intencionalmente partilhado. Esquecia, a cada vez, o que o conduzia, ou tentava dar-lhe outro significado. Adaptava-se à postura formal que julgava ser a mais adequada. E a cada despedida agradecia a uma entidade superior o privilégio que tivera. Regressava a si e tentava convencer-se de que deveria estar grato, mas que o céu não lhe pertencia, que seria com os pés na terra que deveria caminhar. A ficção era matéria para uma outra vida, para outras vidas que não a sua.

Foi assim que lhe propôs aquela viagem, naquele dia. Sem se questionar porque teria sido aceite. Sem analisar mais profundamente o que poderia viver do outro lado. Para si era certo que o sentimento era só seu e impossível de partilhar. Como combinado encontraram-se à porta da estação. Como sempre acontecia chegaram ambos antes da hora marcada. O destino fora previamente definido e as passagens antecipadamente adquiridas. Entraram na carruagem e sentaram-se lado a lado. Aguardaram o horário de partida percorrendo notícias no jornal e revista publicados nesse dia. Os momentos de silêncio não eram usuais, sentiu alguma ansiedade em redor da forma como haveria de quebrar aquele. Reassumia a formalidade da personalidade decidida. Afastava a tentação do que sentia. Sempre que conversavam olhava-a bem nos olhos, sem reparar que estavam fixos nos seus. Eram vastos. O branco brilhante de sorriso abraçava aquela pequena castanha amadurecida, no centro. Deliciava-se naquele frente a frente vivo.

Pousou o braço esquerdo no apoio que separava os dois lugares. Não se apercebera que o direito dela já por lá estava. As suas peles tocaram-se. Ia afastar o braço quando um assalto interior lho mandou permanecer. Sentiu que as peles não se tocavam. Encostavam-se. Toda a sua atenção concentrou-se no absorver de sentidos. Escassos segundos em que quis apreender um aglomerado de sensações, na ilusão de as guardar, de as poder reviver, de as reavivar. Foi com a mão direita que ela lhe chamou a atenção para um pormenor na paisagem. Os braços separaram-se. E no silêncio do seu interior quis congelar a sensibilidade experimentada. Havia uma parte de si a ouvi-la e outra a tentar que as suas palavras lhe tocassem como a sua pele lhe havia feito.

Mais uns quilómetros de ideias trocadas, conversas continuadas e ao oferecer-lhe pastilhas na palma da mão estendida, os dedos que escolheram o doce ofertado arrastaram-se pelas falanges dos seus dedos e, antes de pegarem na guloseima, abriram-se de novo, recuaram, forçaram espaço entre os seus, entrelaçaram-se e abraçaram a sua mão. Baixou o olhar num tempo em que necessitou de confirmar consigo próprio se estava ou não acordado. Levantou o olhar e descobriu um esboço de sorriso nos lábios dela, um rascunho de ternura no seu olhar. Deixou seus dedos corresponderem no abraço e o silêncio tomar conta da troca de olhares. As pálpebras dela desceram e a boca avançou na sua direcção. Sem que palavras o pedissem levou seus lábios ao encontro dos dela, sem questionar a verdade do que estava a acontecer, a certeza do que estava a sentir. Secos, os lábios humedeceram-se. O comboio assinalava o final da sua marcha.

Fechou o livro com o som seco de embate das páginas e colocou-o na mala de mão. Levantou-se em direcção à bagageira, tirou a mala de viagem e dirigiu-se à porta. Quando descia os degraus para pisar o cais de chegada, pensava para consigo própria: “Até eu poderia escrever um livro assim… poderia ser eu a protagonista duma estória assim.”


Passos com olhares, ao invés de ampliações, são palavras trazidas pela inspiração e posteriormente complementadas pela objectiva do olhar da Sonja.


sábado, 5 de dezembro de 2009

NAQUELA RUA HÁ UMA ESQUINA

Foto de Bror Johansson


Naquela rua há uma esquina
onde a viagem termina
e o sonho começa.
Adivinham-se olhares
nos passos por percorrer,
guardam-se palavras
dispensadas de dizer.
Quando te pressinto
sob o contra-luz da tarde,
no rio, os navios
anunciam o desejo
de ancorar no cais.
Traduzes num sorriso
o desejo dum abraço
e o caminho encurta-se
nessa rua sem fundo.
No horizonte dum beijo,
os corpos dominam
os olhares que se fecham
na moldura enlaçada
pelo murmúrio do reencontro.
Entrega-se a tarde
no princípio duma frase
prolongada no pôr-do-sol
onde as palavras se repetem
no eco das mãos e dos lábios.
...
Quando a noite adormece
a cidade devolve-nos
aos ruídos do silêncio
em que o desejo cresce.
E ao dobrares a esquina
dessa rua terminada,
o sonho adia-se
na sombra da saudade.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

RECADO II

Foto de Ursula I Abresch


Agarra-me com a força com que as pétalas o fazem à sépala!

E, se um dia, tiveres de me deixar cair
que o faças em terreno fértil fixo à tua raiz,
para que eu possa, de novo, fecundar com amor
os ramos da tua árvore.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

DE SEGREDO EM SEGREDO

Foto de Justin Hofman


De segredo em segredo
levas-me pela mão
até ao cabo da memória,
onde os pensamentos
se esqueceram de lembrar.

Ali, naquele extremo
onde a terra desistiu
de invadir o mar,
e as tuas recordações
são vagas
rebentando na areia
que abres ao meu olhar.

Nem sempre a vida
tem a persistência do oceano,
e as ondas cansam-se
de rebentar na praia
desistente de olhar o mar.

É difícil voltar ao pélago
em demanda duma ilha
perdida na imensidão
sob um céu de nuvens.

Paro!
… entre o caminho errante
e a descoberta dos rumos.

Olho-te!
… nesse espelho de água
estilhaçado no voo das gaivotas.

Mergulho!
… num abraço de maresia
suplicando que o transborde.

Sou istmo deste querer
que os corpos ainda separam
mas os corações desejam.


sexta-feira, 27 de novembro de 2009

CONTEMPLAÇÃO

Foto de Gwenn


No limite do horizonte,
onde a tua contemplação
se fundia em assombro,
o rebentar de cada vaga.

Na altivez da sua crista
nasciam em espuma
gomos duma tarde
banhada de felicidade.

Descobri no teu olhar
o voo dos peixes,
asas em cardume
num céu de água.

No furor do mar
descobri a serenidade
que acalma a corrente
do contínuo ribombar.

Quando o sol derreteu na água
inundaram-na estrelas
de origens indefinidas;
caminharam-nos passos
numa navegação
ao encontro da lua.


quinta-feira, 26 de novembro de 2009

NA SOMBRA DUM MOMENTO

Foto de Codrin Lupei


Nos teus lábios
seguro o tempo,
o mesmo que me foge
no vazio entre os dedos
quando as mãos se despegam.

No teu olhar
seguro as marés
de palavras repetidas
pelo eco dos ventos
que sopram no peito.

Em cada abraço
seguro o rio
paisagem desaguada
nos corpos que se fundem
em estuários do amor.

Solta-se o ritmo ordeiro
dos corações cavalgantes
por planícies que raiam,
no perfume que fica nas horas,
no tempo que se cola na pele,
à distância dum intervalo
interregno dum encontro
na sombra dum momento
numa mesma margem...


quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS


Corria… não para chegar. Antes num regresso. Sem caminho. Como se nunca quisesse ter saído. Seguramente. Sem dever ter partido. O labirinto era um terreno plano, árido, sem paredes, nem obstáculos. Mas é impossível apagar o caminho que já se percorreu. Era esse o desafio. Era essa a impossibilidade. Apagar o que nunca poderia ter sido trilhado.

Dei um salto. Estava escuro. Passei a mão pelo rosto. Estava molhado. E frio. Os olhos ainda estavam fechados. Tentei localizar-me. Procurei o interruptor do candeeiro. Em cima da pequena mesa-de-cabeceira, a luz verde do relógio digital marcava 3:41. Era madrugada. Fora mais um pesadelo. Percebi então. Só mais um. A somar a tantos outros.

Quanto mais tentava, conscientemente, fugir daquela noite, mais percebia o quanto ela pesava no inconsciente. E era sempre em fugas que ela se traduzia. Quanto mais fugia dela e me esforçava por a deixar para trás, mais ela se mostrava uma evasão impossível. Um destino sem saída. Um rumo sem mapa.

O coração abrandara as batidas. Levantei-me. Deambulei até ao lavatório. Molhei o rosto já molhado. Respirei fundo. Engoli um pouco de água. Regressei à cama na expectativa de recuperar o sono. Faltavam pouco menos de três horas para acordar.


terça-feira, 24 de novembro de 2009

O ANO DO PENSAMENTO MÁGICO

Foto recolhida aqui


Somos convidados a ouvir um recado dirigido a todos. As memórias de respostas sempre questionáveis duma experiência de vida que um dia chegará a qualquer um de nós. Ainda que as características possam variar, o conteúdo será sempre similar. As verdades irrefutáveis do adiamento em aceitar a partida definitiva. As mentiras que nos contamos para escamotear a realidade que está ao alcance das mãos. A eterna esperança de podermos manipular o passado se o futuro nos revelar as razões do ontem. O futuro que nunca planeámos, porque o amor faz-se de vida.

Um texto verdadeiro, particularmente bonito, escrito por Joan Didion, que Diogo Infante doou à magnitude artística e humana de Eunice Muñoz. Uma sucessão de parágrafos na voz de uma mulher que, tal como Judite de Sousa referiu no programa ‘Grande Entrevista’ do último dia 19, parece não ter idade. A mulher Eunice Muñoz demonstra ao longo de setenta minutos a tenacidade duma personalidade que, mesmo nos momentos menos moldáveis, assume a vida como algo que se controla. A actriz Eunice Muñoz demonstra porque é, e será, uma Senhora do teatro português. Cada pose, cada intenção, cada gesto, cada expressão estão minuciosamente estudados, escolhidos e trabalhados para que nós, os que nos sentamos a apreciá-la, sejamos induzidos a crer estarmos a ouvir a própria Joan Didion, e não a actriz.

Os parágrafos da história que corre nas veias de Joan Didion são acompanhadas por um jogo sublime de beleza, estabelecido entre peças abstractas dum cenário de Catarina Amaro, e diferentes níveis de abertura da cortina negra. A prova, mais uma vez, de que a simplicidade resulta quando a arte é clara e permite respirar, através dela, as sensibilidades de quem se senta numa plateia para ser surpreendido pela magia dos dotados. Referência ainda para a música original de João Gil. Tão só um pormenor mais de bom gosto que completa, tal como o apontamento final de vídeo realizado por Pedro Macedo, o encanto duma noite a desfrutar prazer.

O ano do pensamento mágico está em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, até ao dia 20 de Dezembro. Entre 7 e 31 de Janeiro subirá ao palco do Teatro Nacional S. João, no Porto.

Numa primeira abordagem à sinopse ou críticas sobre O ano do pensamento mágico, poder-se-á criar a convicção de se ir assistir a um trabalho dramático, comovente, dorido. Não foi, para mim, essa a realidade. Acolhi-o como uma demonstração de como a vida pode ser valiosa se o amor a habitar. Pois mesmo quando ela nos obriga a resumir os que amamos a uma moldura, situada no lugar nobre da secretária… dir-lhes-emos repetidamente ‘amo-te mais do que apenas mais um dia!'


segunda-feira, 23 de novembro de 2009

NOS TEUS DEDOS


Procuro entre teus dedos
o compasso da melodia
que quero compor;
ritmos de quem canta
sem ser compositor.

É o ritmo de teu coração
que procuro nas tuas mãos.
É em busca do tempo certo
que as abraço,
para que me sintas
na afinação demandada
nos batimentos que ouço
nos teus dedos.

E na harmonia de encontrar
tuas mãos nas minhas
fica-me a certeza de cantar
a felicidade de ouvir
o teu ritmo em mim.


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

MANTO DE PALAVRAS

Foto de Vernon Trent


Estendeste-me um manto de palavras
que colhi como se fossem pétalas
duma flor a quem queria conhecer o cheiro.
Eram tuas, senti-as minhas.
Não as conhecia, sabia-lhes o sabor,
nunca as lera, conhecia-lhes as letras.
Caminhei entre significados,
descobri intenções.
De algumas fiz pele
de outras, véu de aconchego.
Deitei-me nelas e afaguei-me…
Bebia-as e traguei-lhes o calor,
olhei-as e extrai-lhes a cor,
sussurrei-as e copiei-lhes o som…

… cheguei à tua boca.
… nos teus lábios depositei
a doença
que as tuas palavras
me curam.


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

FERNANDO TORDO NO TEATRO DA TRINDADE

Foto recolhida aqui


Seis da tarde. A cidade realiza o sprint final de mais um dia. Corre no regresso preparando a noite. Às vezes chegam palavras, chegam recados. Quando as palavras chegaram senti-as… ainda que não tivesse lhes atribuído o recado que hoje lhes saboreio. Quando elas chegaram, lembrei-me o muito que respeitava e admirava as canções dum senhor que ontem fui ouvir cantar ao Teatro da Trindade.

Um concerto curto de sessenta minutos. Pouco mais que meia dúzia de canções intercaladas por muita aprazível conversa. Muitas palavras em que as suas memórias nos levaram a simbólicas homenagens a homens como José Carlos Ary dos Santos, José Calvário, Raul Solnado, João Maria Tudela, Pedro Osório, Carlos Mendes… Palavras que nos mostraram as emoções pessoais do homem que aos sessenta e um anos se comove com o neto que a sua filha lhe ofereceu, ou com o prémio Saramago com que o seu filho foi recentemente distinguido. Palavras que nos revelaram histórias do nascimento de algumas das suas canções. Canções que elegeu para cantar ontem. Foi o prazer de lembrar a existência de João e Joana, ou Adeus Tristeza. Foi a oportunidade de trautear letras que percebi a memória não ter esquecido.

Entre o muito que lembrou e revelou, transmitiu, de novo, a facilidade com que o monstro Ary dos Santos pegava nas composições que lhe levava e as musicava com letras que são poemas dos mais bonitos escritos na língua portuguesa. Letras de canções que têm cheiro e cor, em que nos afundamos com o prazer de quem se sente abraçado pela arte da escrita.

De algumas dessas histórias tento aqui reproduzir a ocorrida quando, após terem concluído Cavalo à Solta, Fernando Tordo e José Carlos Ary dos Santos se estendiam por largo tempo à procura dum título para a canção. No meio de muitas divagações, indecisões, conjecturas e propostas, eis que João Maria Tudela, que acompanhara nesse dia Fernando Tordo, timidamente se intromete e lhes diz algo como: “Desculpem! Mas como é que dois animais que acabam de fazer uma canção como esta não vêem que o título só pode ser Cavalo à Solta?”

Na vida há momentos em que nos chegam palavras que nos mergulham num sorriso enorme. De felicidade!


quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS

Foto de Benoit Michelot


Sentada em frente ao estirador sentia-se capaz de contemplar o Universo. Aquele era o reino da sua segurança. A aridez de intenções que lhe desertificava a rotina do dia-a-dia, ali tornava-se mar, oceano imenso, profundo, incomensurável. Transfigurava-se em frente àquela prancheta. As ideias transformavam-se fauna sucedânea em ciclos reprodutivos.

Nas suas mãos, o carvão riscava com a liberdade dos pensamentos soprados por ventos de inspiração. Os esquiços tomavam forma esbatendo-se, alongando-se, desfigurando-se em traços, em contornos e, de novo, em figuras. Em frente àquele estirador não tinha incertezas. Sentia-se suficientemente distante das águas paradas em que mergulhava ao sair para a rua e entregar-se ao anonimato da multidão.

Ainda que ali se realizasse… Mesmo que ali se reconhecesse… Só no horário profissional ali se entregava. Recusava-se ignorar que lá fora, também uma fracção do mundo lhe pertencia. Por método, por rotina ou talvez por crença que um dia chegaria, em que consigo se cruzaria uma história diferente. Uma chuva diluviana que se entranharia pelas fendas abertas no deserto da espera.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

NA ESPERANÇA DO ESMORECIMENTO

Foto de Takashi


Quando o sol inicia a curva descendente rumo ao horizonte, o dia ilude-se na convicção de ainda poder ser especial.

Mesmo que já estejam distantes os fulgores do raiar do astro rei, o dia sente energia suficiente para ainda poder ser único.

Já em pleno ocaso, quando esmorecem os últimos laivos de pujança, o dia renova a esperança de que ainda poderá atrair.

E quando a noite é soberana, e já as sombras de sol são discretas lembranças apagadas na artificialidade dos néones, o dia deita-se com a certeza de que, afinal, a vida só começa amanhã.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

VENTOS DE DESPEDIDA

Foto de Chiara


Quando o gume da incerteza
se crava na face da rocha
abre-se uma fenda de Inverno
na carne que não sangra.
Questionam-se nebulosas do olhar
chovendo lágrimas de dúvidas,
gotas turvas na tristeza
de saber irrecuperável a partida.
Desabam expressões sem rosto
sobre tantas páginas lidas,
pedaços de breu arrancados ao céu
na desilusão dos dedos sem carícias.
Seca a saliva por engolir
na boca lacrada pela noite,
sobra maresia no aroma do coração
que se despede do fogo por acender.


domingo, 15 de novembro de 2009

SENTIMENTOS

Foto de Cile Bailey


Escorrem pelas palavras
sentimentos apartados do peito
infindáveis segredos desvendados
no cíclico despertar da vida.
Soltam-se sem saber dizer
a cor do canto que os envolve
vestem a poesia das letras
em paisagens que temem descrever.
Ouvem-se em suspiros indomáveis
libertos no limiar do sonho
são sorrisos rasgados de verdade
que o coração é incapaz de segurar.
Espalham-se na eloquência do desejo
ouvindo-se antes de chegar,
adivinham-se na vontade de ser
eco dissolvido num olhar.


sábado, 14 de novembro de 2009

ASCENSÃO

Foto de Mike Deman


Nas águas perdidas da tua força
percorro o retorno sem endereço,
sinto no vento da tua noite
a ansiedade que me sopra no peito.
No fogo derretido da tua vontade
acendo a crença sem receios,
sinto no rio da tua incitação
o caudal que corre na minha escrita.
Na percepção da tua tristeza disfarçada
infundo raízes de auto-estima,
sinto na luminosidade do teu sorrir
a direcção projectada no futuro.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

ERA UMA VEZ O AMOR...

Foto de Jonas Göthlin


No princípio da verdade havia um túnel onde o amor quis entrar. Fez uma pausa. Ponderou. E ao dar os primeiros passos sentiu-se agarrado. Parou. Olhou para trás e percebeu que era a dúvida que o detinha. Olhou-a para tentar ler-lhe a intenção quando percebeu que a razão estava por perto apontando-lhe na direcção duma luz encandeante. Era a tentação. Logo em seguida a razão indicou-lhe uma rampa com uma superfície deslizante que descia em plano bem íngreme até que se prolongava por uma subida lançada em deslumbrante velocidade, mas que não permitia ver o que existia para além do cume. Disse-lhe ser a paixão. Mostrou-lhe ainda uma vereda onde existiam roseirais com lágrimas em muitas das pétalas. Para entrar nela era necessário transpor um portão onde se podia ler a palavra ciúme. Sentiu-se confuso, mas antes que o expressasse a razão segredou-lhe ser sua tarefa obrigar o pensamento. O amor perguntou-lhe então o que era uma outra área vedada por sorrisos, onde as plantações pareciam arrumadas por alturas. Explicou-lhe a razão ser um terreno onde se semeavam vontades para fazer crescer certezas. Só quem ali deixava as suas sementes se decidira a entrar no túnel. O amor assim fez antes de reentrar no túnel da verdade. Aos poucos foi ajustando a sensibilidade à luminosidade. Primeiro inexistente. Depois sentiu-se enleado por uma nebulosa que se abria na escuridão. Até que um ínfimo ponto pareceu definir o horizonte. Lentamente esse pedaço de luz foi crescendo até iluminar por completo o túnel da verdade. O amor percebeu que estava próximo do destino. Parou quando à sua frente já só descortinava uma larga, vasta e serena imensidão de água. Olhou para trás. A outra extremidade do túnel já não era perceptível. A dúvida, a tentação e outros mais caminhos haviam ficado do outro lado. A verdade não acabava ali, mas só a sombra da razão se arrastava atrás de si. Abriu os braços, fechou os olhos e deixou-se cair no lago da confiança.


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

DIZ-ME QUE OS OLHARES NÃO FALAM

Foto de Marc Vreenegoor


Diz-me que os olhares não falam
quando a ocasião os surpreende
num cruzamento inesperado,
em que a agnosia do idioma os prende
numa explicação inaudível
traduzida numa tentação irrecusável.

Diz-me que os olhares não falam
quando se abrigam num recato ensaiado
de quem saboreia o prazer
ao sentir-se observado,
mas rejeita mostrar intenção de se oferecer,
fechando-se sobre si mesmo,
dobrando a percepção do que sobre si se foca.

Diz-me que os olhares não falam
quando na discreta procura
encontram o que pensavam poder evitar,
mas secretamente desejavam desafiar.

Diz-me que os olhares não falam
quando voluntariamente não se desprendem,
mesmo ignorando que vocabulário usar.

Diz-me que os olhares não falam
quando o teu e o meu se reencontram
.… se entendem na sintonia,
dizendo o que as palavras calam
e só os corações não silenciam.


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS

Foto de Benoit Michelot


Os primeiros passos da manhã levavam-me até em frente ao espelho onde, ainda sem me ver, começaria a remoção dos pêlos que diariamente se repõem após cada dezena diária de minutos gastos para os eliminar.

Acordara com aquela sensação de que se me sentasse ao teclado, as palavras se despejariam dum segredo construído no sonho nocturno. Tentava colher palavras soltas, ideias desgarradas, para juntar em constelações a construir. Tentava que a inspiração não me fugisse por entre a água com que molhava a cara.

No espelho, os olhos pareciam ser relevo desadequado. Àquela hora era impossível perceber se guardavam algo do que tivessem contemplado durante o sono.

Continuei os preparos matinais sempre com o inquietante sentimento que desperdiçaria a oportunidade de deixar as palavras se sucederem. Era certo que após a primeira, outras viriam. Reforçava aquela sensação de que as secava, por mais que as procurasse acender, na água com que fazia a espuma, a qual me preparava o rosto para a passagem da lâmina.
Estaria a castrar as palavras em cada pêlo rasurado?

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O POETA OLHOU AS MÃOS

Foto de Angela Vicedomini


O poeta olhou as mãos
reflexos dum espelho
onde a vida se escondia.
Embaciavam-se as certezas
em aguaceiros de dúvidas,
intermitência duma luz
esquecida da sua firmeza.
Esboçava-se em tracejado
a linha, antes, contínua.
Desfocagem de imagens
sobrepostas à nitidez do rumo.
O poeta olhou as mãos
e nublou-se-lhe a visão.
Guardou-as.
… até que a monção
sopre num novo olhar.