quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O ACORDAR DO DIA

Foto de Rose Atkinson


Nas caras amarrotadas
acendem-se olhos de sono;
os odores da manhã
disfarçam-se em fragrâncias,
vapores de ampolas
que exalam os corpos
raptados ao sossego
pela observância do dever;
curiosidades palmilham
amálgamas de notícias matinais,
pensamentos invadem
devaneios literários;
fecham-se sobre si os seres
enquanto a manhã acorda,
escondem-se os olhares
retardando o despertar;
e quando a cidade os recebe
arrastam-se na verticalidade imposta,
dispersam-se os passos
ao encontro de rumos sabidos,
quotidianamente trilhados
no ritual do amanhecer.


terça-feira, 29 de setembro de 2009

ENIGMÁTICO RIO

Foto de Anders Gunnarsson


Era um dia de Inverno em que a temperatura do sol não se fazia sentir, mas o seu brilho realçava as tonalidades das cores que pintavam o panorama. Caminhava sem rumo para preencher as horas, em busca de paisagens que lhe enchessem o olhar, descobrindo apreendendo. No topo de uma colina avistou-a. Surpreendeu-se. Chegou mais perto para tentar sentir.

A sua força extravasava para fora das margens. Os seus limites pareciam perfeitos. A natureza desenhada numa harmonia sonhada. Ele percebia-lhe uma frescura de juventude, numa certeza de maturidade. Ela corria com um vigor que só a vida pode declarar.

Aquela descoberta deixou-lhe um sorriso nas emoções e um desejo de voltar, de saber mais. Foi regressando todos os dias, com a vontade de beber, de se molhar, de acompanhar. Seguia o itinerário que ela tomava. Analisando-a, conhecendo-a, ficando preso. Tentava adivinhar-lhe o percurso. Algumas vezes confirmando-o, tantas outras maravilhado pelas revelações, pelas novidades, pela fortuna.

Tentava tocar-lhe mas um impulso dela era suficiente para lhe fugir, para esquivar-se. Furtava-se-lhe como num jogo de sedução sem pausa, sem foz.

Ele guardava para si aqueles sabores experimentados. Acatava a impossibilidade de correr com ela. Porém, sabia que ela se habituara à sua presença.

Sempre que ia ao encontro dela descobria-lhe mais uma etapa da sua corrida. Amiudadamente voltava atrás para rever pontos do percurso que já conhecia. Nunca sentira a tentação de recuar mais. De caminhar em direcção à nascente. Ela própria evocava recordações desses terrenos, enquanto avançava. Sorvia-lhes a força de progredir. Ele bebia-os, sentia-lhes o gosto como se lhe abrissem janelas na alma.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

... COMO [SERENAMENTE]

Foto © Sonja Valentina


como o sol que se levanta
por detrás do horizonte do mar,

como o tacto que se move
sob o
tecido da pele,
como a areia que emerge
por debaixo da espuma das ondas,
como o corpo que acorda
ocultamente na
carícia das mãos,
como o albatroz planando
sobre o
reino dos céus no domínio do mar,
como o beijo que se furta
na demora dos lábios ávidos de o receber,
como a voz que ecoa
no vale cravado entre as escarpas da montanha,
como o frio que se destapa
dos corpos submersos no algodão da madrugada,
como a medusa que cede
na fraqueza do regresso às águas salgadas,
como as pálpebras que se cerram
no mergulho de deleite no oceano dum olhar,


serenamente

como o tempo que se escoa
por entre os dedos de dois amantes
espraiados no areal da manhã,
no retorno duma onda
que refreia o ímpeto do mar.



[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

domingo, 27 de setembro de 2009

CORDAS DE [IN]SEGURANÇA

Foto de Valimar


Seguro-te
neste cintel de palavras,
onde cubro coragens
com tecidos de inquietação;
Amarro-te
nesta relinga de intenções,
abertas a ventos de instintos
soprados pela nudez do olhar;
Sustenho-te
neste tributo de segredos
despidos pela mão vagabunda
num contrabando de emoções;
Suspendo-te
sobre este mar de silêncios,
suspiros escumados pela razão,
gritos emudecidos pela descrença;
Aprisiono-te
nesta cela sem paredes,
ecos de memórias desenhadas
na comunhão de vozes furtivas.
Prendo-te
neste cabo sem corpo
que me impede de te alcançar
porque as palavras se esfumam
na intemporalidade dum desejo
consumado para te abraçar.


sábado, 26 de setembro de 2009

FRAGILIDADE

Foto de barbara


Que sabor amargo
é o deste vento
que sopra a gávea do veleiro,
envolvendo-o de solidão;
à chegada ao molhe?
Que brilho diluído
é o desta estrela
que guia planetas carentes,
no embaraço indulgente
dum céu isolado?
Que reflexo baço
é o deste lago
banhando margens vazias,
desalentadas pela carícia
de rebentações fantasiadas?
Que calor derretido
é o deste abraço
arrebatado numa força inócua,
desaguando no endereço
que os corações não leram?
Que força é esta
que me desanima
a cada passo dado, estruturado,
mergulhando-me na ingratidão
de não reconhecer as forças
que me mantêm viva
a vida?
Que debilidade é esta
que toma conta de mim
quando me evado da certeza
de fazer de amanhã
o passo seguinte?

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

HÁ DIAS...

Foto de Vernon Trent

Há dias em que a pele pede
um toque diferente,
o olhar reflexo
e a língua não se segura na boca.
Há dias em que a melodia
não se ouve sozinha,
as mãos se sentem perdidas
e o nome sem dono.
Há dias em que o coração
tenta bater mais veloz,
o amanhã não se conjuga
e sucumbem quereres no deserto.
Há dias em que o corpo
se sente descoberto,
precisa vestir-se em abraços
render-se na fusão dos sentidos.
Há dias em que os dias
rogam pelas horas de outros dias,
as que não me pertencem
e que não tenho como manobrar.


CHICKEN A LA CARTE

Não é novidade. Não poderia ser. Mas para mim foi!

Chicken a la Carte, de Ferdinand Dimadura, é uma curta-metragem distinguida no Festival de Berlim de há três anos.

Não é novidade. Infelizmente não o poderá ser. Só porque a considero imprescindível de ser apreciado a decidi partilhar. Para quem já a conhece desejo que possa ser uma boa oportunidade de rever três diferentes estados de fome.

Obrigado Gab por me a teres revelado.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

ESCREVE-ME


Escreve-me!
há tanto que não o fazes.
Sinto falta
daquelas longas páginas
com olhares da tua alma.
Escreve-me!
aqueles pedaços de ti
por onde passava meus dedos
na espera de guardar
a morfologia da tua pele.
Escreve-me!
aquelas missivas inadiáveis
que penetravam em meu coração
qual míssil de longo alcance
explodindo no deserto
onde agora secam meus desejos.
Escreve-me!
aquelas palavras soltas,
pequenas gotas de cristal
caindo no vidro do meu olhar,
fertilizando vales de esperança
cada vez mais distantes.
Escreve-me!
ou…
se não quiseres,
se não te sentes capaz,
se as palavras já não te expressarem,
dobra em três uma folha branca,
fecha-a num envelope
e envia-ma…
pelo menos saberei
que te lembraste de mim.

INSPIRAÇÃO É RESPIRAR [II]

Foto recolhida aqui


Quem acompanha o meu blog sabe que não é meu hábito responder aos comentários deixados. Quem não o acompanha poderá certificá-lo se tiver o trabalho de o ler.

Abro uma excepção, quem sabe se a primeira de outras que o futuro desvendará, em relação aos comentários que as actrizes de Inspiração é Respirar têm deixado. Permitam-me dizer-Vos [Ana Catarina e Dina] que passei muitos anos em cima dos palcos e conheço, na pele, o conforto dos aplausos, bem como o sabor menos agradável da crítica destrutiva. É preciso saber viver com todos eles!

As minhas palavras tentaram expressar a minha reacção ao que vi. Porventura terá sido culpa da minha expectativa de ir ver algo que superasse as palavras lidas do João Negreiros. Fiz questão de construir a minha opinião de uma forma o mais construtiva possível. Tal não implica, no entanto, que tenha de dizer bem do que senti como possível de ser melhorado, de menos conseguido. Usei os adjectivos que melhor me pareceram poder transmitir os meus sentires. As opiniões não são todas convergentes. São-no tantas vezes contrárias, opostas, diferentes. Mas todas devem, têm de ser respeitadas. Tranquiliza-me o ter evitado, nas palavras que traduzem a minha mera e exclusiva opinião pessoal, enquanto direito que me assiste, o carácter destrutivo. Lamento que não o tenham assim entendido. Não sinto ser eu o prejudicado.

Apesar de quase três décadas de experiência também eu sou, muitas vezes, académico. Não o considero ser um defeito. Oxalá tudo o que faço, conseguisse pelo menos ser académico. Considero-o um estado. Um patamar que nos abre a possibilidade de fazer melhor, de progredir. Apesar da minha idade poder ser quase o dobro das vossas, acordo todos os dias disponível para aprender, com quem venha por bem apontar-me pormenores de que não gosta, e que eu possa melhorar, que tenha condições para tal. Os elogios são importantes, mas é no acto de fazer mais e melhor, de corrigir erros, que crescemos.

Estranho que só lhes tenha ‘tocado’ o que escrevi como não elogioso. Não sou ninguém para vos ensinar a arte da declamação, da representação, da interpretação. Tal não me retira o direito de analisar e expressar a minha opinião. Em momento algum do texto refiro ser capaz de fazer melhor do que fizeram. Como não tal não existe, quanto a mim, qualquer razão para se insurgirem como o considero terem feito.

Se estão tão seguras da vossa qualidade, ainda bem para vós. É bom sentirmo-nos seguros. O problema é se o somos em demasia, a ponto de nos tornarmos cegos e incapazes de olharmos, mas sobretudo de sentirmos, o que se passa à nossa volta.

Eu faço questão de continuar a ser humilde. De respeitar para poder ser respeitado. Se as minhas palavras vos fizeram sentir desrespeitadas, lamento dizer-vos que é um problema vosso, da vossa capacidade de interpretar as palavras dos outros, neste caso as minhas.

Termino com um desejo; o de que sejam capazes de caminhar mesmo encontrando opiniões que não vos sejam as mais desejadas. Pensar que todos os espectadores vos aplaudirão como os amigos nos fazem, é pura ilusão. Não construam a estrada para as vossas próprias desilusões.

Mas não deixo de vos agradecer a vossa opinião. Do confronto de ideias poderá nascer a luz.


quarta-feira, 23 de setembro de 2009

ABRAÇO

Foto de MrNudge


Puseste à minha volta
os braços que não reconheci,
fechaste-me numa caixa
de cheiros sem horizonte,
experimentei a liberdade
dentro de fronteiras;
Mas não há limites
que prendam os sonhos.
E eu sonhei!
Fechado nesses braços que me deste,
preso nesses lodos que me seguram,
aconcheguei-me nos ramos sem tronco,
suspendi-me nessas asas sem voo,
espreitei para fora desses muros,
experimentei o odor do exterior
e… decidi ficar
nesse universo que me oferece
o prazer de a ti me abraçar.


terça-feira, 22 de setembro de 2009

VISÃO NEBULOSA

Foto de Enzo Penna


Para além da neblina há um dia de sol. Ainda que haja uma manhã de chuva por atravessar, para além das nuvens há sol. Para além da névoa da fumaça há um fogo vivo que arde. Para além da poeira há a limpidez do que é definido e preciso.

Na ânsia de te encontrar, desenho-te. Procuro-te entre o nevoeiro, na esperança de te ver brilhar no céu azul. Afasto as nuvens em busca dum caminho cristalino e, porventura, esqueço os esconderijos da bruma.

Por entre a neblina ouço o coração bater. Esqueço poder ser o meu, obcecado na vontade de que seja o teu apelo. Por entre o fumo ouço o meu nome. Julgo seres tu a chamar-me, não identificando a voz da minha consciência reclamando moderação. No meio da poeira pairam palavras que creio serem tuas e que ordeno na composição da minha partitura.

Embaciam-se-me os olhos neste querer sem destino. Turvo a procura no desconhecido guiado pela imaginação. Desfoco a realidade no vapor que encobre o vidro. E como não te desvendo, invento-te... forma sem contorno, esboço sem forma, imagem sem corpo... talvez amanhã esfregue os olhos, arrefeça esta temperatura da ansiedade e se dissipe esta névoa que te simula de sorriso na boca, à minha espera... quando o nevoeiro levantar.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

AO ENTARDECER


Sobre cada dia cai o entardecer
num convite à noite.
A cada dia percorremos o caminho do tempo
num salto até ao ocaso da vida.

Cai a tarde lá fora.
Enquanto o sol se esconde
espelham-se as águas nas despedidas dos rumos
deixadas pelos barcos que acostam.

Também eu fundeei
cansado de navegar.
Prendo amarras no limbo da esperança,
abro canais em limos do olhar.

… mas desisto.
Desço as velas,
abandono os remos
e espero.
E sonho que te tornas âncora
e te soltas desse rochedo de segredos
e sobes até mim
e te transmutas leme…

Desabrochando a noite seduzes-me a vontade,
abres-te em cartas de marear que nunca li.
Do meu corpo náufrago
fazes o leito da tua noite.

A cada dia cai o entardecer,
pequenos passos para o ocaso da vida.
Aportado no tempo quieto
espero pela tua luz farol
espero que me mostres a madrugada…

... ao entardecer abro estreitos de esperança,
fios de prata tecidos na força de crer.
... ao ocaso da vida antecipam-se as trevas
e a tua mão será a chama do meu querer.


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]


domingo, 20 de setembro de 2009

VISÃO MATINAL


Vinda do nada surgiu no meio da multidão matinal. De baixa estatura e rosto miúdo, os olhos escondiam-se por detrás de óculos escuros e fixavam-se na leitura. Um blusão de ganga encobrindo parte de um colar que se estendia ao longo do tronco, concedia-lhe um ar leve e informal, mas de indiscutível bom gosto. O cabelo curto desarrumava-se intencionalmente em comprimentos diferentes anarquicamente estudados. A inconstância de cores evidenciava a artificialidade que não se estendia às unhas. Cuidadosamente tratadas mantinham a sua cor natural. Os dedos pareciam desenhados numa proporcionalidade perfeita com as mãos. Nelas tinha Tudo o que sempre desejamos, de Janelle Brown. A expressão do rosto adivinhava-se ajustada às revelações da leitura. Na boca, as sensações inspiradas… o lábio inferior mordido, o esboço de sorriso, um espanto semi-expirado. Que viagens pode um livro provocar numa mulher? Em que espelhos se pode ver reflectida? Que transposições pode realizar para as páginas que lê? A cada desequilíbrio segurava-se na leitura. Eu prendia-me àquela visão matinal. Momentânea. Conjecturando o que não era observável. E que deixei para trás na cadeira do tempo… por onde as horas passam.

INSPIRAÇÃO É RESPIRAR

Foto recolhida aqui


Poesia é inspiração. Poesia inspira. A poesia respira. A poesia varia consoante a respiração de quem a inspira. A poesia de João Negreiros, como já o tentei exprimir, afigura-se-me orgânica, intimista, pedaços de alma arrancados à carne, com dor, com prazer. Poder-se-á, porventura, considerar que a sua poesia transporta uma maturidade que a sua idade – se é que a idade marca o que quer que seja - poderia não indiciar.

Inspiração é Respirar é um espectáculo inquestionavelmente meritório, pelo Teatro Universitário do Minho. Para quem admira a escrita de João Negreiros, um espectáculo que pretende ser um passar pelo ‘percurso antológico da poesia’ deste jovem poeta e dramaturgo, será sempre digno de ser apreciado.

Terei de confessar, sem questionar todo o empenho, crença e obviamente amor, pelo que dizem, das jovens actrizes, que me deixou muito aquém das expectativas. Senti-o como um exercício ainda muito académico. Carente de muito do peso que a poesia de João Negreiros carrega. Mesmo que cuidada, a dicção peca, algumas vezes, por incompreensível. As inflexões traem a pretensão das intérpretes. A declamação é demasiado estereotipada. O gritar não implica, necessariamente, nem força, nem drama. Os sorrisos, ou mesmo risos, parecem-me um quanto artificiais. Aqui e ali desajustados. E naqueles que melhor conhecia, algumas respirações escolhidas desviaram sentidos dos poemas. Arrisco-me a dizer que faltará, ainda, às dizedoras a maturidade que João Negreiros revela como maior do que seria expectável.

Quando já se mastigou alguns dos textos de João Negreiros, como eu fiz, tem-se na boca, guarda-se no paladar uma gustação muito suculenta. Aquilo que eu provei em Inspiração é Respirar carece de temperos, soube-me a insonso. Mas quando há vontade, e não duvido que a haja!, há que deixar apurar, rever as doses, procurar novos condimentos. Um espectáculo tem, sempre, a obrigação de crescer. Neste exemplo há muito por onde o conseguir.

sábado, 19 de setembro de 2009

PARABÉNS


Ao contrário do que é habitual, as palavras não saem. Não encontro como as compor e as aceitar como tradução do que sinto.

Num rápido flashback passo por inúmeros momentos que te pertencem, mas que me deste e me deixaste fazer nossos. Lembro a tua primeira diabrura, ainda antes de experimentares as primeiras inspirações, quando teimaste em te agarrar ao cordão umbilical, gerando apreensão e obrigando a cirurgia quando todos já te ansiávamos. Nessa altura, ainda era impossível dizeres: ‘Pai… 'tava a brincar!’

Recordo o teu primeiro internamento. A quase impossibilidade de te encontrarem uma veia onde espetar a agulha para te ministrarem o antibiótico. Como eras bebé…

E cresceste. E contigo os momentos que repartimos. As piadas não intencionais. As brincadeiras, os jogos, os livros, os passeios, os adormeceres, os acordares. Muitas vezes, o meu colo foi o teu baloiço, a tua cadeira, o teu meio de transporte. Algumas vezes os teus abraços têm sido o colo de que preciso.

Contigo e por ti viajámos juntos até galácticas, acompanhámos ratos, seres verdes que moram em reinos bué da longe, conhecemos figuras universais através da banda desenhada, visitámos zoos, foram-nos apresentadas personagens que se tornaram figuras públicas internacionais, testemunhámos viagens de animais em contentores ou aviões. Tu acreditando. Eu acreditando que tu acreditas.

Cresceste. Estás a ficar grande. Fogem os traços de bebé. Do meu gordalhão. Chegam os de rapaz. Mas não se esfuma a tua ternura, o teu sorriso, o teu carinho. E os teus beijos continuam a ser incalculáveis tesouros.

Hoje não consigo escrever as palavras que queria fazer tuas. Talvez seja difícil encontrá-las ao nível do que me fazes sentir. Hoje só me resta desejar que repitas muitos dias como o de hoje.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

ABRAÇOS DESFEITOS

Foto recolhida aqui

O que pode um olho, que vê, reflectir no olhar dum invisual? O que podem as mãos revelar a um olhar que não vê? Mesmo que sem ousadia de inovar, Almodovar leva-nos em Abraços Desfeitos, através do olhar sensitivo dum realizador que cegou e reconstrói aquilo que foi a sua visão objectiva sobre o amor.

Almodovar usa a sua habitual crueza para nos trazer os destemperos da vida ao ecrã. Recusa a harmonia e incomoda com os exemplos exacerbados da trama dramática do quotidiano. Almodôvar tem necessidade de ampliar cada adversidade como se nos pretendesse agredir. Mesmo em pormenores menores faz uso do prazer de os dimensionar exageradamente em grandes planos como para garantir que não nos passarão despercebidos.

Numa história de amor atropelam-se a desgraça, o ciúme, a traição, a obsessão, a violência, a paixão, a surpresa. Almodovar fala da emoção recusando a harmonia da poesia. Quase nos envergonha de sermos emocionais tal é a forma como satiriza os sentimentos. Creio que não por desrespeito. Talvez para nos obrigar a despertar e perceber as agruras que a emoção também abraça.

Para não discordar com a sua obra, Abraços Desfeitos, a mais recente obra cinematográfica de Pedro Almodôvar, é um olhar de vida sobre o amor; de quem domina, de quem expressa, de quem encobre, de quem se submete, de quem silencia, de quem se surpreende. E como sempre, Penélope Cruz está igual a ela própria: lindíssima. E a vida abraça-nos em paralelo com tantos abraços que se desfazem... desfazendo-nos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O REGRESSO ÀS PALAVRAS


Todas as manhãs voltava àquela carta. Refugiava-se no sótão apenas protegido pelas telhas da intimidade. Sentada via aquelas palavras como se fossem, todos os dias, as primeiras. Agulhas de luz penetravam os passos isolados por que optara, mas aquelas linhas eram a mão porque ansiava, os dedos que queria entrelaçar nos seus.

Isolava-se do mundo e percorria palavras que a levavam por aromas de especiarias. Involuntários raptos por arrebatadores campos de paladares há muito guardados.

Através de parágrafos sonhados sentia aqueles vocábulos, expressamente escritos para si, tocarem-lhe a pele. O incenso invadindo as narinas inebriando-lhe os sentidos em essências exóticas exuberantes.

Prosseguia na redescoberta de se descobrir em cada sentido encapuçado, em cada frase encobrindo verdades disfarçadas, desejos que procuravam se revelar. E sentia-se coberta por tecidos de seda, mil cores aquecendo paisagens, paletas de sonhos à espera de pincel para correrem folhas, telas ou o seu corpo que requeria uma imersão de tons de Verão.

Lia. E a cada recomeço sentia-se fruto ansiado por ser tocado, saboreado, apreciado. … alperce, uva, kiwi… a pele num arrepio, o sumo que escorre na tez peganhenta…

Todas as manhãs regressava àquela carta, como se outras não houvesse. Porque aquela era a única que a fazia sentir-se singular. Ali naquele sótão coberto por telhas de cumplicidades sentava-se num voo de regresso à terra mãe, de que bebia o cheiro, engolia descrições, tacteava palavras que já sabia de cor e se esforçava por esquecer, para as olhar como se em cada dia nunca as tivesse lido.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O FESTIVAL DA ISABEL

Foto recolhida aqui


A meio de Agosto, ao voltar a Portugal, fui surpreendido por um post do S.S. que dizia ter regressado, por uns dias, ao Porto para a derradeira despedida de uma Grande Senhora. Abalo! Não sabia que a Isabel nos tinha deixado.

Não ouso dizer que a conhecia. Tive a oportunidade de a contactar e conversar, sempre sobre assuntos profissionais, quando dirigia o Teatro Rivoli. Foram suficientes para perceber a sua tenacidade, a sua crença, a sua força para conseguir projectar artes como a dança, o teatro ou as marionetas.

Percebi há pouco que decorre, até ao próximo sábado, na Invicta, mais uma edição do Festival Internacional de Marionetas do Porto. O Jardim da Cordoaria será o espaço nobre do que é o último FIMP idealizado e desenhado pela Isabel Alves Costa.

Não restam muitos dias e não tenho disponibilidade para subir ao Porto e espreitar este evento que me agradaria poder testemunhar sobretudo pelas memórias que me acordam palavras trocados com a Isabel.

Creio que a Isabel Alves Costa era uma mulher que confiava na mudança, no futuro, ainda que a desilusão lhe tivesse arrancado sonhos. Repito que os meus contactos com esta Senhora foram escassos, demasiado ténues para falar sobre ela. Muitos dos que mais privaram com ela serão melhores exemplos do que eu. Leiam-nos! Eu limito-me a agradecer-lhe ‘ter-nos’ acolhido no regresso ao Rivoli. E na impossibilidade de a homenagear com a minha presença, no Porto, esta semana, deixo aqui estas palavras arriscando sugerir aos que possam, a visita a este festival que ela gostaria, certamente, de saber ser uma festa!

terça-feira, 15 de setembro de 2009

CARTA EM SILÊNCIO

Foto de Schnette


Pediste-me, um dia, que repousasse as memórias. Antes quisesses que tapasse o sol. Antes me pedisses para secar o mar ou que abraçasse a lua. Tentei… mas sabia da fragilidade da minha aptidão. O rio corria demasiado forte para serenar, as pontes atravessavam-se no seu curso sem desejarem deixar de serem cruzadas. E as memórias não se calaram.

Sempre que a comporta se abria, as águas voltavam a correr com a impetuosidade de quem não pensa e se expande na necessidade de dizer.

Só quando implantaste o silêncio as memórias se contiveram. Não que se tenham calado ou adormecido. Arrumaram-se num estado de hipnose consciente. Cingindo-se ao estado de viverem sem se sentirem desejadas.

O silêncio assumiu a postura de pontuação final. Algumas vezes de questionamento. O silêncio passou a ser a barreira não transponível. A fronteira não ultrapassável. A montanha que desejava, mas não me permitia escalar. Por respeito. Talvez por receio de não te conseguir espreitar quando atingisse o cume.

Quando ousas quebrar esse silêncio sinto-me capaz de atravessar o oceano, esquecer o frio que nos separa e caminhar num voo rasante sobre todas as memórias que um dia me pediste que fizesse repousar. Mas essas memórias demoram há muito um instante em que se querem rever. Cada palavra tua torna-se um travessão a oferecer-lhes o discurso directo. E elas não ponderam. Irrompem pelos caminhos de silêncio e mostram-se. Mas… de novo surge um ponto que as detém.

Cansadas de não viver, as memórias pediram-me que as fechasse num envelope. Ficarão na esperança de que as tuas palavras as venham buscar. Não porque se ofertam, mas apenas porque as desejas rever e dar-lhes vida.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

TESTEMUNHAS

Foto de RamonaG


Era clara a memória que guardava de se deter na entrada da sala e ficar a contemplar o fumo que se projectava em direcção ao tecto, para lá das costas daquele imenso cadeirão onde seu avô se sentava em longas horas de ausência, viajando para fora das portadas que deixavam estender o seu campo visual primeiro pela varanda e em seguida pelo jardim. Por perto costumava ter alguns volumes roubados às prateleiras das estantes centenárias, que se encostavam àquelas paredes altas em que o branco se manchava com a passagem das épocas. Obras literárias que folheava para chamar a História. Essa História que tantas vezes o avô lhe narrava como se tivesse sido ele o argumentista das películas que relatavam o quotidiano das nações.

Hoje era ele que, sentado naquela cadeira, rebuscava esses prazeres de ser neto, de aprender embalado por uma voz a que a idade roubara poder, mas acrescentara saber. Quando se é criança, as histórias são melhores de ouvir, do que de ler. A imaginação corre mais ao ritmo dos sons. As entoações servem de puxões, outras vezes de empurrões para a construção dos cenários, a idealização das personagens, a antecipação dos finais.

Hoje, ali sentado, ele tentava concentrar-se no desenrolar do conto que há dias se sentia incapaz de escrever, de continuar. Procurava inspiração enquanto os pensamentos recuavam ao encontro da infância. Passava o olhar pelas lombadas alinhadas que tantas vezes vira seu avô pegar para folhear o seu interior. Olhava-as, sem pedir ajuda, na expectativa de que elas lhe segredassem uma pista. Muitas vezes, uma palavra era suficiente. Uma palavra era a janela que se abria e o fazia voar através de outras que lhe nasciam espontaneamente. Olhava pela janela e via-se a trepar pelo velho ulmeiro até chegar aos troncos que lhe concediam um ângulo de visão para espreitar a sala. Para se quietar e esperar que o olhar do avô o descobrisse. Que saísse do seu voo ausente e aterrasse no seu reino implantado num tronco duma árvore. Quando o olhar do avô saltava por cima das hastes, o olhava seriamente antes de começar uma sucessão de gestos que se havia tornado código secreto entre ambos, ele sentia-se empossado de almirante a quem fora dada ordem de zarpar. E ele partia em navegação pelo céu, comandando bandos de aves.

Uma inquietude do presente levava-o a ficar preso a essas memórias de infância, num cenário que pouco havia mudado. Só o tempo se tinha feito pesar nos corpos dos seres vivos. Antes era mais fácil acreditar que conseguia imaginar, criar, inventar.

Sentiu-a entrar. De pés descalços. Como se voasse rasando o soalho. Não a procurou, mas as suas meditações foram interrompidas. Percebeu que ela chegara perto do cadeirão, mas manteve-se imóvel. Limitou-se a chamar a sua percepção sensitiva para aquele momento. Ela olhava-o de cima, como a ave que paira no céu à espera da presa. Talvez aguardando a identificação da sua chegada ou apenas cumprindo o plano previamente idealizado. Trazia o cabelo preso em si mesmo. O pescoço descoberto. O punho direito cerrado.

Enquanto ele tentava mostrar-se insensível à presença dela, mas com todos os sentidos em alerta máximo, ela parecia agir com prudência, como se cada passo houvesse sido estudado para garantir que não falharia. Ganhava segurança e acreditava ir obter sucesso. A cada tic.tac do relógio de parede a tensão aumentava, ao contrário do que cada um procurava exteriorizar e convencer-se a si próprio.

Ele contava cada segundo e sentia o coração espaçar sucessivamente menos as batidas. Esforçava-se por reduzir a pressão da mão pousada no braço do cadeirão que lhe parecia estar mais ao alcance da vista dela. Sabia que ela estava em vantagem. Podia controlá-lo. Sabia-se observado mas sem ousar confrontá-la.

O sol entrava pelos vidros da porta erguendo-se no céu. Ela deslizou sobre o lado direito do cadeirão. Oferecia-lhe o perfil esquerdo. Parou, em pé, a escassos centímetros da perna direita dele. O punho direito aliviara um pouco a tensão. A mão esquerda cruzava-se para trás das costas. Olhava-o superiormente para assegurar qualquer reacção dele. Deu mais um passo na sua direcção. A mão direita dele deslizou sobre o braço do cadeirão. Tentava controlar a vibração involuntária. Saiu da superfície de pele e avançou sobre a coxa esquerda dela. Ela sentiu o coração desacelerar. Deu o passo derradeiro. Até que a sua perna tocasse a dele. Rodou cento e oitenta graus e sentou-se nele. Sob a leve túnica de seda que ela vestia, sentiu a frescura duma pele exalando o perfume do creme hidratante. Percorreu-lhe as costas. Ela anichava-se no seu peito. Chegou aos ombros. Desprendeu as alças. Sentiu-lhe a pele entumecer-se de desejo. A temperatura do corpo a querer subir. A respiração a antecipar-se.

Na direcção do tecto erguia-se uma névoa de pensamentos. Estavam abertas as páginas do livro onde ele iria roubar palavras para continuar o conto que um dia, talvez, adormeceria numa estante, duma sala, de lombada virada para a cena dum instante de fogo, do qual passaria a ser testemunha.

domingo, 13 de setembro de 2009

INCRÍVEL TASCA MÓVEL

Foto recolhida aqui

Considero ser pertinente perguntar se a intenção seria fazer um espectáculo. Respiravam-se uns leves laivos desta formatação, mas eram mais as não regras do que os princípios formais habituais.

Uma taberna abria-se sob o céu de Lisboa. Os 'clientes' corriam em busca da melhor posição, entre mesas e cadeiras que não negavam o peso dos anos e do uso. Em jeito de circo, o mestre-de-cerimónias anunciava a noite, descrevia a proveniência dos cenários e adereços, algumas personagens confundiam-se com o público, a maioria dos intérpretes confundia-se com as personagens.

As canções dos Oquestrada, intercaladas com incursões por Itália, Ucrânia ou fados alfacinhas, arrastaram-nos vertiginosamente ao longo de mais de duas horas. Um banho de raízes que nos agarram às proveniências. Como Marta Mateus, a vocalista, refere, as canções são partidas que anseiam pelo regresso. Nelas cheiramos as géneses culturais, as origens do grupo e, inevitavelmente, somos enviados aos nascimentos de muitas partes de nós. Popular, sem ser popularucha, a actuação dos Oquestrada permite-nos sentirmo-nos dentro, parte integrante da mesma. Ora com o acompanhar rítmico, ora seguindo as letras, ora para os mais impetuosos juntando-se à festa e à dança.

Desde a estrutura e ritmo da sequência, às figuras que povoam aquele imaginário que nos é oferecido, até aos instrumentos musicais utilizados, ou forma como alguns deles são tocados, quase tudo é anti-convencional. Mas no final só se pode ter uma forte e estruturada convicção: assistiu-se a um grande espectáculo! E como se tal não bastasse, no meu caso pessoal, ainda me apelou ao sentimento, à emoção das múltiplas referências a um local insignificante, imperceptível, ignorado, incógnito, ‘inexistente’ na rede de salas de espectáculo do nosso País: a Incrível Almadense, o primeiro palco que pisei.

Na passada sexta-feira, e no âmbito do Programa "Todos, uma caminhada de culturas", a Incrível Tasca Móvel atravessou o rio e instalou-se no Martim Moniz. Foi a primeira oportunidade que tive de ver os Oquestrada ao vivo. Na sexta-feira, houve festa, da rija, na Mouraria.

sábado, 12 de setembro de 2009

LER-ME

Foto de Vernon Trent


Perdi-me entre searas de palavras. Espalhei-me em espigas de emoções deixando o sol tocar-me a pele. Sorri humedecida pela ternura da esperança em encontrar o meu trevo. Cresciam os troncos que uma brisa de desejo afastava para eu andar. Alucinei-me no meu pólen de papoila e deitei-me nos rios deslumbrados de estrelas estendidos a meus pés. No céu da noite brilhava o dia e eu era capaz de caminhar nele em posição invertida relativamente ao solo. Descia num chapéu que as aves me abriam quando a minha voz entoava um cântico feminino de vida. De mão dada aos dias, abraçava as noites. O meu sono eram ventos quentes nascidos na raiz do sonho. Corria sem chegar. Mas não me cansava. E chegava antes de lá estar. Antecipadamente na certeza de te ter como destino. E nas tuas palavras descobria o olhar onde mergulhava na cegueira do querer.

Um dia sentei-me e comecei a ler-me esta história. Pedaços de mim escritos no papel. Pedaços dum conto arrancados à minha carne. E parei. Quer eu, quer a minha ouvinte já conhecíamos o argumento. Mais não era do que memórias da pele. Hoje sento-me em frente a mim mesma e recordo este desejo engolido em pequenos tragos. À espera dum novo Estio que antecipe a Primavera onde irei encontrar esse corpo que farei meu. Onde me aprisionarei em abraços, onde me saciarei de beijos e em que adormecerei escrevendo uma seara de palavras que um dia mais tarde me lerei.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

ABRAÇAR-TE AS PALAVRAS

Foto de Codrin Lupei

Eu queria abraçar-te as palavras
e ignorar este mar que nos gela
sentir o aconchego dos sentidosAlinhar ao centro
estreitado nas sílabas por soletrar.
Eu queria atravessar esse gume
que me golpeia o silêncio
como se caminhasse sobre a água
sob a qual escondes tua voz.
Eu quero abraçar-te as palavras
que me despertam os gritos
adormecidos e esquecidos na estagnação
das águas que me coibo de remexer.
Eu quero atravessar esse silêncio
que não pretendo violar
para sentir o sol despertar
cada vez que a irresistência toma conta
das palavras que desejas
ver por mim abraçadas.

EM MEMÓRIA DE MEMÓRIAS

Imagem recolhida aqui


Subi-a[s] três vezes. Sempre com aquela sensação de chegar ao tecto do mundo e ficar com a cidade aos meus pés. Uma dessas três vezes foi à noite o que me permitiu uma perspectiva diferente, noctívaga, iluminada, brilhante.

No último piso, as janelas rasgavam-se em vidro abaixo dos nossos pés e acima das nossas cabeças. Era a sensação perfeita. ‘A cidade que nunca dorme’ estava ali, aos meus pés. Ou fugidia num ritmo infernal que não perdoa os indecisos, ou cintilante em incontáveis luzes que a deixam eternamente acordada.

Acima desse piso tinha-se acesso a um terraço. Nele respirava-se o ar 107 andares distantes do solo. Uma sensação, para mim, indescritível. Apenas possível de comentar com quem a tenha experienciado. Uma vez em Abril, outra em Novembro tive a felicidade de sentir o sol mais perto de mim.

Faz hoje oito anos a cegueira destrui-as arrastando consigo milhares de vidas. Não me permito, sequer, comentar a razão do acto. O homem é considerado um ser racional. A minha racionalidade é insuficiente para, alguma vez, entender as razões que possam levar seres humanos a agir assim.

A minha racionalidade só me chega para acreditar que um dia, caso consiga voltar a Nova Iorque, ao chegar àquela área onde elas existiram conseguirei sentir na pele o sabor, guardado pela memória, do ar bem lá em cima, onde, hoje, só os pássaros chegam ou os homens se fazem transportar nesses veículos inventados para transportar e que um ser humano, supostamente racional, entendeu transformar em veículo de morte.

Hoje, a minha racionalidade só me chega para usar a minha memória em memória dos muitos a quem os sonhos de vida foram roubados, numa manhã de Setembro em que o mundo perdeu dois dos seus tectos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

OLHAR DE CRENÇA

Foto de Daniel


Sentava-se na última fila da longa plateia da basílica, alheia ao movimento que os turistas ofereciam em visitas ininterruptas de curta duração. Numa posição hirta, ligeiramente deslocada para a frente, parecia procurar garantir as palavras do orador ausente. O seu olhar distante fixava-se na fé, na esperança, no acreditar. Sem focalizar estava preso na crença e brilhava com a segurança de quem sabia que o desejado iria acontecer. No segredo do seu olhar era legível a certeza que ali a trouxera, a de fazer da oração uma prece ou agradecimento de quem não duvida, de quem não teme, de quem não lamenta, pois soube encontrar a felicidade no querer e no crer. Na vastidão do espaço, por entre as dezenas de visitantes, no paralelismo dos bancos, aquele olhar iluminava mais que os raios de sol que penetravam através dos vitrais da igreja.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

NO SILÊNCIO

Foto de S A Bates

No meu silêncio
ouço a ausência da tua voz,
as palavras
que vestiram tonalidades
na harmonia do som.

Ouço o silêncio
em ecos de memória
e esgota-se no vazio
o desejo
de te ouvir.

As palavras não têm som
é a voz que as embeleza.
… ou não
sou eu que ouço
a cor que lhes queres dar.

Tenho saudade
da tua voz
a violar o meu silêncio,
numa maré de prazer,
fecundar de cor
as palavras que guardo
de ti.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

À ESPERA

Foto de Giorgio Lorcet


Pousas tua mão na minha
e eu deixo pousar
esse voo que quero fazer até ti
à espera que chegues a mim
fecho no meu coração
a mão que aperto na minha
para não deixar voar
as asas roubadas ao teu voo
ventos soprados na espera
dum momento de demorar
o aperto de duas mãos
no voo de dois corações
à procura de se cruzarem