quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A VOZ... OUTRA VEZ

Foto de Mattias Gustafsson


A porta estava encostada. Nunca fora encerrada. Muito menos esquecida. Como algo que se deixa muito tempo sem uso, estava adormecida. Submergida numa névoa de memórias em que era difícil perceber se esse entorpecimento era intencional ou reflexo da impossibilidade de esquecer.

Permanecia no ar um sabor reconhecido de antecipação, de adivinhação involuntária, de prolepse inexplicável. Intocável. Não verbalizável. Inolvidável. A vontade adormecia nos impulsos calados. O silêncio respondia ao emudecimento. E a emoção obedecia à razão, não procurando sinais, esquecendo-se de se rever no espelho que abria incertezas de poder reflectir. O olhar nunca parou de espreitar e o desejo era só a incapacidade de o deixar de ser, de deixar de olhar.

As palavras tinham deixado de ter regresso. Uma vasilha enviada para a essência da cisterna e que voltava vazia… ou repleta de invisibilidade. Mesmo assim, espaçadamente, o rio corria em direcção à outra margem. Não procurava. Simplesmente lembrava o sorriso no olhar do girassol. As pontes, de não serem atravessadas, também haviam abraçado o estado de sonolência. Nesta mesma manhã, a tentação tocara a pele do impulso e acordara a vontade de lembrar a saudade das palavras.

O gosto da surpresa é um arco-íris de paladares agridoces. Impele o incremento das batidas do coração. Passa um arrepio na pele. Acorda sentires adormecidos e impacienta a inquietude da alma.

Uma suave brisa empurrou a porta. O reconhecimento daquela inflexão soprou um aroma de passado trazido ao presente. Indomáveis, as memórias atravessaram a planície dos instintos, embriagando de éter a manhã. Enquanto o coração galopava, a voz afectuosamente repetia-se num eco de regresso transeunte.

Placidamente o silêncio roubou o lugar ao assombro. As palavras acordaram brotando das escarpas da memória, recusando-se a adormecer na alma. Soltaram-se das raízes da razão, romperam a fresta da porta entreaberta e correram atrás da voz… outra vez.

6 comentários:

Anónimo disse...

Tanto saudosismo! A memória às vezes podia ser menos irequieta.

Unknown disse...

Há portas que nunca se deveriam fechar, principalmente aquelas que nos trazem boas recordações.

Gi disse...

A porta e a sua visualização, sinónimo de comporta aberta aos/de sentimentos.

helenabranco.poet@gmail.com disse...

"A memória, da voz das palavras...ecoa como címbalo

É feito de que matéria? tão volátil tão silenciosamente presente, tão irresistível...tão
amarrotado...tão expectante?!!!"

tomo-o hoje como eco no meu blog

ABRAÇO

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

portas...bonita prosa poética.

beij

Marta disse...

vou levar esta porta comigo.
e já não vai a tempo de não o permitir.

o texto não levo, apesar de muito, muito mais bonito...

e esta música, só não a levo porque já a tenho :)