quinta-feira, 30 de abril de 2009

VOU ESCREVER UM POEMA

Foto de Hans Corral

Vou escrever um poema
com palavras de areia
crivadas em sonhos raiados
molhadas pelo relento do retiro
apuradas nas dunas cegadas
escaldadas na certeza do coração 

Vou escrever um poema
com palavras de areia
moldadas nos remoinhos de água
embaladas pelo torpor das ondas
mordidas em bocas de fogo
queimadas em ardor de emoção 

Vou escrever um poema
com palavras de areia
na calidez de minhas mãos
...
mas se os grãos arrefecerem
não atribuas culpas à noite
nem a ventos açulados
foste tu que perdeste
a rota dos seus significados

quarta-feira, 29 de abril de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?


Foto de Philip LePage

Desceu à rua e entrou no cinzento da manhã. Aconchegou a gola do casaco para enfrentar o vento frio que auxiliava o acordar. Entrou no café. Sem pensar procurou uma mesa vazia. Ao sábado era mais fácil consegui-las, mais ainda se o pequeno-almoço chegasse a hora já retardada. ‘Bom-dia Sr. Gaspar! Traga-me um chá e um Pão de Deus só com manteiga. Obrigada.’ Olhou para a rua, através da vidraça, como se lá fora fosse passar um documentário sobre o que fazer num sábado adverso ao sol. Pegou num jornal pousado numa das mesas próximas e folheou a área de lazer. Sabia os filmes em cartaz e aqueles que desejava ir ver, mas mesmo assim confirmou se não haveria alguma estreia que lhe tivesse passado despercebida. A leitura de algumas linhas do jornal, acompanharam o pequeno-almoço entretanto deixado sobre a mesa. ‘Sr. Gaspar, um café por favor.’ Dois minutos depois, o Sr. Gaspar deixou-lhe o café e ‘Menina, já me esquecia, pediram para lhe entregar este envelope…’ ‘A mim, Sr. Gaspar? Mas quem foi? Não tem o meu nome… como sabe que é para mim? Que estranho!... Só pode ser uma brincadeira…’ ‘Não, menina, é para si, sim senhor! Hoje, ainda cedinho, um senhor muito delicadamente pediu para que lhe entregasse e descreveu muito bem a menina, sabia onde morava, que aqui costumava vir todas as manhãs… não tenho dúvida! É mesmo para a menina!’ Decidiu abrir o envelope. Dentro, uma folha branca com apenas três linhas soltas perdidas no vazio da página. Estremeceu, quando leu algo que já pensara ter esquecido ‘Porque o vento me trouxe o seu olhar o tempo parou em meu pensamento a esse hiato de vida vejo regressar…’

Antecedente:
I II

PONTO DE LUZ

Foto de Doug Roane

Deste-me o mote e a tua vontade seduziu meu silêncio. O impulso é ‘ponto de luz’ aceso por detrás da porta que pediste para fechar. E gelo se o meu olhar não alcança a tua pele. E dispo as palavras para libertar as nuvens e ver nascer o sol.

terça-feira, 28 de abril de 2009

RETICÊNCIAS

Deixa que me deite nas tuas reticências e daí tente perceber as tuas vírgulas, os teus travessões. Deixa que me deite nas tuas reticências e contemple os teus pontos de exclamação, ensaie respostas para os teus pontos de interrogação. Deixa que me deite nas tuas reticências, mas não me ponhas aspas. Deixa que me deite nas tuas reticências e se fizeres ponto não te esqueças de mim. … e se fizeres parágrafo, leva-me contigo!

HERÓIS DAS MANHÃS


Eles são heróis das minhas manhãs. São culpa deles os primeiros risos do meu dia. O disparate é tal que quem se cruza comigo deve pensar se não seria melhor aconselhar o meu internamento… não é muito normal alguém ir, sozinho, a rir-se como algumas vezes me acontece. E gosto deles porque a intenção não é fazer humor – digo eu! – mas apenas disparatar, dispor bem. E para mim, conseguem-no de forma magnífica. Ainda esta manhã, as imbecilidades à volta dos cornflakes e da tirinha verde de pickles no hambúrguer foram tantas que era difícil conter as gargalhadas do lado de cá. Agrada-me também o ambiente que parece reinar na equipa onde o ‘chefe’ é afrontado, com toda a tranquilidade, pelos ‘súbditos’. A música que passam é comercial e temos de ouvir repetidas vezes o que eles querem, como se um determinado CD não tivesse mais canções do que aquela que nos obrigam a ouvir. Depois, parecem ter feito uma descoberta e anunciam uma nova música, como se ela já não estivesse editada no dito álbum há largas semanas, ou mesmo meses, atrás. Mas perdoo-lhes tudo isso pela disposição que exportam. Eles são heróis das minhas manhãs. Eles são o Pedro Ribeiro, o Vasco Palmeirim e a Vanda Miranda [por agora a tratar do bebé recém-nascido]. Eles fazem As Manhãs da Comercial aqui.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

SENTI-ME

Foto de Patrício Suarez

Senti teus passos
ouvi tua chegada
adormeci o engodo
senti teu cheiro
mover os lençóis
debaixo de mim
senti tua mão
arrepiar-me a pele
teus lábios humedecerem-me
lugares proibidos
senti tua boca
abrir-se na minha
engolir meu desejo
senti teus dedos
explorar sem licença
senti teu calor
cobrir minha rendição
senti-me quando entraste
e em mim ficaste
preenchendo-me
… de prazer

domingo, 26 de abril de 2009

SUSPENSO [suspenso]


À distância de um olhar
contive a tradução do sentimento
gotas de verdade engolidas
na dúvida imperceptível do leitor
à distância de um abraço
retive a chama dum corpo
barco sequioso de fundear
num mar de galhos vivos
à distância de um beijo
embarguei a sede molhada
estuário dum desejo ardente
alagado em esperança adiada
à distância dum sim
evitei o não
calado na pergunta por fazer
tragado pela resposta não dada

e… ficou suspenso
à distância de um olhar
à distância de um abraço
à distância de um beijo
à distância de um sim


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]


sábado, 25 de abril de 2009

STACEY KENT

Foto tirada daqui


‘tantos sonhos, qual será meu? tantos sorrisos, qual escolho?’…

Nas sombras do palco, as distâncias entre si eram mínimas, talvez para assegurar que seriam um uníssono. Quando os instrumentistas lhe deram vida, os primeiros acordes provaram as suas individualidades, as suas mestrias para sobreviverem por si sós, mas certificaram que estavam ali para viverem juntos, pelo menos naquela mais de uma hora que agora começava, pelo menos até que lhes pedissem para tocar pela última vez, naquela noite. Um raio de simplicidade trouxe a sua voz a palco. Serenidade, limpidez e frescura raiaram das palavras que cantava, com a voz que é ‘um suspiro’ ou ‘um confidente murmúrio’. Da colaboração entre Jim Tomlinson e o romancista Kazuo Ishiguro nasceram muitas das canções interpretadas, ontem à noite no Auditório do Museu Fundação Oriente. Águas de Março, Corcovado e Samba da Bênção foram ouvidas nas línguas de Rimbaud ou de Shakespeare. Um estímulo envolventemente redondo foi timbre do muito que se ouviu. Contudo, uma sonoridade menos repetitiva, menos insistência na tentativa de agradar através da simpatia manifestada pela cidade que a acolheu, temperados com uma ou outra mais incursão pela Bossa Nova, teriam sido perfeitos. 

 

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O ACORDO



Anda por aí a correr uma petição contra o 'acordo ortográfico' e a favor da 'Língua Portuguesa'. Pessoalmente, não tenho nada contra certas regras que poderão simplificar a uniformidade, em especial, da escrita nos países que têm o Português como língua mãe. Aceito, porém, a existência de casos que soarão muito estranhos. Veja-se este exemplo:

De fato, este meu ato refere-se à não aceitação deste pato com vista a assassinar a Língua Portuguesa. Por isso ... por não aceitar este pato ... também não vou aceitar ir a esse almoço para comer um arroz de pato ... A esta ora está úmido lá fora ... por isso, de fato lá terei de vestir um fato ...

Transcrevi-o exactamente como o recebi, assim como a imagem. Digam de Vossa justiça. A polémica está lançada. Mas não sou eu o instigador.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

SEM FORMA

Foto de Codrin Lupei

Faço da manhã um repositório de sonhos
captação de imagens em reflexos da madrugada
história de dúvidas emergindo da vida
performance de proximidades à espera do dia
legendas de horas contraídas no texto
lentidão do impacto na velocidade da queda
narração de forças guiadas pela história
subtraídas às cores perdidas de ontem
missão arrastada no desenrolar da noite
implantada na crosta ferida do sono


quarta-feira, 22 de abril de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?


Foto de Philip LePage

‘Posso ligar-te mais tarde? Estou a acabar o texto para a imprensa, dentro de minutos estarão a chamar-me para justificar a sustentabilidade do projecto e, ainda, tenho de verificar a última secção do relatório… vá… ligo-te, mais tarde… eu também…’ Tentou concentrar-se, quando o telemóvel voltou a tocar. Olhou para o mostrador que indicava um nome reconhecido e… ‘Bolas! Outra vez não! Que chato! O que hei-de fazer para deixar de me telefonar?... por agora, podes ligar o que quiseres que tenho mais que fazer… isso, vai ligando até que te canses!’ Escreveu mais umas linhas e o telefone voltou a interromper-lhe a fluidez de pensamentos. ‘Sim Leonor… diga-lhes que estou mesmo a acabar. Dentro de minutos já o terão… diga-lhes que irá quentinho… Leonor, por favor, diga-lhes que serão os primeiros a recebê-lo e se forem lestos terão a exclusividade… nem que seja por uns minutos… Obrigada!’ Mais umas palavras e o toque do telemóvel repetiu-se. Desta vez era a mãe. Instintivamente redigiu uma sms ‘Mamã, agora não posso! Ligo-lhe quando acabar a reunião!’ Só depois de enviar a mensagem se lembrou que a mãe não lia mensagens… ‘Paciência!...’, pensou ‘Tenho de acabar isto, e agora!’ Poucos minutos haviam voado quando a chamaram para a reunião. Ia a deixar o gabinete quando o telemóvel anunciava a chegada duma sms. O remetente não devia constar da sua lista de contactos, pois a máquina não o identificou. O número também não lhe disse nada no imediato. Pousou o telemóvel e decidiu ler a mensagem depois.

Exausta pelo stress do final de tarde, sentou-se na cadeira recostando-se na expectativa duns breves instantes de descompressão. Pegou no telemóvel para ver se existiriam recados. A porta abriu-se… ‘Até amanhã Leonor!... e obrigada’ Só então o seu pensamento se cruzou com a tal sms que não chegara a ver. Abriu-a e leu: ‘Porque o vento me trouxe o seu olhar…’

Antecedente:
I

terça-feira, 21 de abril de 2009

MOVO-ME NOS TEUS PASSOS

Foto de Albin Rylander

Movo-me seguindo teus passos
enquanto o tempo faz uma pausa
para ler os teus segredos
descubro as pedras do caminho
no silêncio dos minutos
cerrado em teus dedos
Movo-me sobre os teu passos
seguindo sombras das pegadas
apagadas pelo vento
descubro abraços de palavras
cravadas na saudade
com que me alimento
Movo-me sob os teus passos
ocultos nas copas de ciprestes
com sulcos de verdura
descubro sílabas de amor
soltas em versos
roubados à ternura

NOVEMBRO EM PARIS

Foto de David Rodrigues

O Sena corria com a mesma serenidade. Nas suas margens os troncos despiam-se, mantendo, alguns, uma camada de folhagem dourada escarlate, contrastando com o céu cinzento que ameaçava abrir-se a qualquer instante. Um vento frio beijava as pedras monumentais que vestem a cidade, agora em tons de bronze. Os dourados iluminavam o interior dos edifícios. A humidade espelhava as esplanadas e molhava o verde das zonas relvadas. Os parapluies decoravam os passeios onde os eternos enamorados se resguardavam da água projectada pelos automóveis subindo e descendo avenidas.

Sobre as folhas que atapetavam os corredores das Tuileries seus passos dirigiam-se sem destino. Imaginavam os sons de acordeão e uma valsa corrida a dois. A brisa passava pelo rosto e gelava as zonas mais sensíveis. O pisar desinteressado das folhas era prazer enlevado como se as nuvens tivessem descido e desabrigado o céu. Os pensamentos divagavam entre um passado longínquo, apenas conhecido pela história, um presente real com braços de desejo para abraçar um futuro intemporal.

Ao longo dos quais o fascínio da juventude caminhava em passadas curtas, nervosas e incrédulas perante o que os olhos testemunhavam. As páginas amarelecidas pelo tempo, repousando nas bancadas dos alfarrabistas, enchiam-lhe os sonhos. A corrente fria parecia desafiá-la a acompanhá-la sob as pontes que ligavam as duas margens. E não havia como não percorrê-las duas vezes para certificar que nenhum pormenor ficaria por apreciar. A sua vontade de cantar misturava-se com a de gritar versos que declarassem o prazer de se sentir terrena naquele final de tarde.

Em Novembro, a noite chegava mais cedo para abraçar o dia. A temperatura convidava ao recolhimento. A luminosidade passava a ser ditada exclusivamente pela claridade artificial que servia também para lhe justificar o nome de ‘cidade-luz’. Afastados e incógnitos no tempo os passos dos dois seres seguiam direcções diferentes. As memórias cruzar-se-iam, um dia, em lembranças dum passeio ao final da tarde com as dum instrumentista junto ao Sena. Havia sido Outono.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

GRAN TORINO


A vida é uma sucessão de histórias com que nos vamos defrontando, outras que vamos construindo, outras que vamos procurando e outras, ainda, a que não conseguimos fugir. Uma história poderá ser o cruzamento duma série de vidas que se cruzam, que se afastam ou cujos percursos são simplesmente paralelos. Há histórias que marcam uma vida. Como se se tratassem dum pecado inconfessável. Que atormentam a alma enquanto os dias tiverem princípio, meio e fim. Há rancores que se guardam e se projectam em situações e pessoas que nada têm a ver com as razões que os provocaram. Que poderão, mesmo, terem sido vitimas dessas mesmas razões. Há forças indomáveis que nos fazem acreditar e defender o que é nosso, o que construímos, pelo que lutámos. E ao lado de tudo isso poderão estar aqueles a quem os laços familiares nos unem. Mas não quererá, necessariamente, dizer que esses laços sejam mais fortes do que outros que se estabelecem com entes a quem julgámos impossível sequer dizer ‘bom-dia’. Mas é a possibilidade de nos revermos neles ou de, ainda que inexplicavelmente, eles entrarem em nós, que nos faz acreditar, aceitar e lutar por essas relações. Nem sempre o pai terá de ser o genético. Nem sempre o filho terá de ser o gerado. Pois essa relação poderá vir da necessidade, da disponibilidade, da reciprocidade. E há histórias em que a vida decide não disponibilizar tempo para o filho e, mais tarde, o pagamento é, mesmo que involuntário, na ‘mesma moeda’. E nessa mesma história, a vida pode descobrir o acto de educar noutra relação, noutra carência. E quando a vida começa a revelar o fim, há que ceder. Há que procurar a paz. Há que reorganizar todas as estrelas. Há que herdar quem o merece, quem assegure a continuidade, com o bem que mais prezámos, com a própria vida.

domingo, 19 de abril de 2009

DIASPORA.PT

“Sons, imaginação, viagem. Três operadores do universo criativo da diáspora portuguesa que deram origem a um vasto reportório – em grande parte ainda desconhecido.
(…) No séc. XV Portugal encetou um empreendimento de insuspeitas consequências no domínio das práticas performativas em muitas culturas do planeta. Em Portugal, para começar: as novidades trazidas pelos navegadores, pelos gentios de outras paragens, pelos migrantes que em Lisboa se estabeleceram, não tardaram em se manifestar musicalmente e originar formas e géneros musicais mesclados.
(…)
Afinal, a música não é senão um produto de contactos, muitos, resultantes de um ímpeto muito próprio da humanidade: o da viagem. Quiseram os caprichos da história e os devaneios de muitos dos seus actores, que a viagem se tornasse na grande quimera portuguesa. A música que ouvimos neste disco representa um pouco da fantasia dos seus viajantes.” 

Estes são excertos das palavras de João Soeiro de Carvalho que introduzem o CD Diaspora.pt dos Sete Lágrimas.
 

Razões ocasionais, que não vêm ao caso aqui expor, levaram-me a que numa tarde de há duas semanas atrás me cruzasse com três ou quatro canções deste disco. O impacto foi tão forte que menos de duas horas depois já tinha um exemplar meu. 

Diáspora.pt é uma viagem através de composições tradicionais de terras por onde os portugueses passaram, recolheram e deixaram marcas. Viagens musicais que se estendem entre os séculos XVI e XIX, mas que revelam uma actualidade incontestável. 

É infinito o universo de sugestões que estas canções provocam, contudo, permito-me eleger duas delas, que os mais assíduos visitantes deste espaço já terão ouvido: Mai fali é, uma composição tradicional de Timor e A força de cretcheu, uma morna cabo-verdiana de Eugénio Tavares. Ambas foram razão de textos que aqui publiquei. Uma melodia e Calendário foram escritos a partir de emoções que as duas canções antes referidas me despertaram. Sentires alimentados pelas memórias, no caso de Cabo Verde, e pela imaginação do que o povo daquele país terá vivido, no caso de Timor, território que não conheço. 

Volto, hoje, a deixá-las por aqui… para meu prazer que, eventualmente, será partilhado pelos que se sintam também tocados por estas lágrimas musicais. 

Para mais informação sobre os Sete Lágrimas e este seu disco, poderão ser recolhidas aqui ou aqui.

 

Obrigado Rui pela revelação!

sábado, 18 de abril de 2009

ARE WE DANCERS? [... or are we dancers?]

Foto © Sonja Valentina

Suspensos nesta trave que nos suporta e é nossas pernas, nossos pés, somos ombros fictícios mas reais. Em nós repousarão, antes de entrarem em palco, as segundas peles que vestirão os protagonistas da noite. É a nós que confessam todo o nervoso, a ansiedade, as inseguranças, o desejo de que não haja falhas. Somos nós que as recebemos impecavelmente preparadas para vestirem os corpos, para os transformarem, para os auxiliarem a exceder-se e fazer sonhar todos os que sentados na plateia se iludirão com a magnificência desses corpos humanos mas irreais, capazes de fazer voar pensamentos, rodar vidas, inspirar desejos. É em nós que ganham ímpeto, procuram estímulo, erigem vigor. Chegam os corpos tiram-nas de cima de nós e colocam-nas em ombros de carne e osso. Durante minutos ficamos despidos. Limitados à nossa estrutura quase inexistente. Perdidos em corredores ou camarins. Atirados para cima de cadeiras, das bancadas, ou mesmo no chão. Longe da música, do palco, das luzes, das palmas. O silêncio faz-nos companhia e apenas ouvimos as conversas dos técnicos que aproveitam para se dirigir ao bar e beber mais uma cerveja, ou das zeladoras de guarda-roupa que consomem os minutos em conversas tantas vezes repetidas do quotidiano como sendo uma novela que se confunde com as novelas que querem modificar os quotidianos. Ao fundo ouvem-se aplausos, ouvem-se risos, em alguns dias lágrimas, vozes falando agora mais alto, e sobre nós começam a ser colocadas as mesmas peles, quantas vezes trocadas, porque nós não temos nome, agora mais pesadas, transpiradas, amarrotadas, mas com mais um espectáculo para contar. Agora não têm o aprumo anterior. São-nos depositadas umas por cima das outras. Temos de nos preparar para, por vezes, nos serem deixadas duas, três. Porque nenhuma nos pertence. A nenhuma pertencemos. E acabamos por ser mero local de repouso antes que nos voltem a retirá-las para as preparar para o próximo espectáculo, antes de lhes renovarem os vincos e o ar fresco de quem nunca foi ainda utilizado. E, nós, voltamos a ser ombros de metal, sozinhos, ignorados, menosprezados, eternamente sem resposta… are we human? or are we dancers? my sign is vital, my hands are cold…


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

O SOL E AS SOMBRAS


Quando não podemos, não conseguimos
ou não nos é permitido olhar o sol,
contemplamos as sombras por ele provocadas
e atrevemo-nos a guardá-las
para lembrarmos tudo quanto iluminou,
o tanto que aqueceu...
para recuperar a sua luz.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

SINTO-TE PERTO


Sinto-te perto
porque penso em ti

Sinto-te perto
porque falas nos meus dias
passas pelas minhas horas
possuis-me os minutos

Sinto-te perto
porque adormeces as minhas noites
afugentas o meu sono
afastas os meus sonhos

Sinto-te perto
quando ficas ausente
porque te sinto falta
porque te procuro mais
porque te preciso mais

Sinto-te perto
quando não te vejo
mas penso em ti
para te sentir por aqui

quinta-feira, 16 de abril de 2009

DE NOVO

Foto de Fritz Fabert

Sobre a mesa espalho todas as palavras como se nunca as tivesse lido, como se não soubesse, de cor, as letras, as sílabas, de algumas. Organizo-as como se fossem estrelas do céu, criando-lhes espaços aparentes em distâncias que se sobrepõem. Leio-as de novo, tento despi-las tanto quanto a minha sensibilidade permite, tento esquecer o que ficou para trás, esbater-lhes o perfume que deixaram em minhas mãos, compor-lhes novos ritmos, ouvi-las de novo na pele. Sinto-lhes a febre no meu peito e volta a invadir-me a insanidade de as experimentar todas minhas. Num ímpeto de loucura respondo-lhes como se tivessem perguntado se as aceitava. Distribuo-as pelos desertos de silêncio, mergulho-as nos oceanos de incertezas, visto-as de dor para se magoarem, esculpo-as com ternura para me beijarem. E agarro-as! Todas! Para que sejam minhas, só minhas, só para mim. As tuas palavras…

quarta-feira, 15 de abril de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?

Foto de Philip LePage

Vindo do lado mais inesperado, aquele cão cinzento atravessou-se à frente do carro obrigando-a a uma travagem brusca para evitar atropelar o animal. Conseguiu-o. Só não impediu que a viatura que a seguia se enfeixasse na sua. O coração disparou… o atropelo evitado do cão, a batida, o tempo a perder e a retirar ao que já era nenhum, as burocracias com o seguro, o carro na oficina… alguns segundos mais e já estava na rua, observando os ‘estragos’. Com cordialidade trocou culpas com o condutor de trás, com quem, agora, dialogava frente a frente. Permuta de documentos. Declaração amigável. Anotação de dados. Acordo sobre a forma de participar às companhias seguradoras. ‘Vá lá… poderia ter sido pior’, pensou para consigo. Enquanto arrumava os documentos, a agenda e… procurava as chaves do carro, dirigiu-se à porta. Encontrou as chaves, accionou o comando do fecho central, abriu a porta e preparava-se para entrar… ‘Desculpe!’, gritou o seu mais recente interlocutor, ‘não cheguei a anotar o seu contacto…’ ‘Está aí nesse cartão cinza esverdeado!’, respondeu-lhe fechando a porta e ligando a ignição. Sem que desse por isso, o proprietário do outro carro continuava a procurar entre os papéis o dito cartão… Embraiou a primeira, confirmou que nenhum cão se iria atravessar, olhou para o passeio certificando-se que ninguém se preparava para cruzar a estrada e reparou num homem que olhava para si. Olhares que se cruzam e fazem parar o tempo por instantes… aliviou a embraiagem… carregou no acelerador e… não reparou que o tal homem, dono do olhar com o qual o seu se cruzara, tinha na mão, um cartão cinza esverdeado…

E SE UM DIA?


E se um dia a terra se enamorasse por um astro e embevecida ficasse a contemplá-lo esquecendo-se de rodar? O que aconteceria aos mergulhados na escuridão eterna, e até quando resistiriam os que mais nada vissem que a luz do dia? Que fariam os perpetuamente abraçados pelo frio, pela chuva, pelo gelo? E um Verão infinito seria suportável? Esqueceriam uns a realidade dos outros? Ou teriam de se empenhar mais para os outros alcançar? Receberia no meu Verão um olhar chuvoso de onde faria noite? Ouvir-se-iam minhas palavras de Inverno no hemisfério onde faria calor? 

ÚLTIMO COMBOIO [sem destino nenhum]


Ao final da tarde sentava-se na borda da plataforma inactiva e parecia ficar a olhar para o infinito… para o destino indefinido que os carris indicavam. Faria cálculos… contaria as travessas de madeira, multiplicá-las-ia pela distância que as separava e perspectivaria quantos quilómetros distariam do fim da linha… final inexistente? Imaginava estações intermediárias, destinos desconhecidos, caminhos para lado nenhum… inventados… imaginados… idealizados… locais onde se parasse para ficar… ou para conhecer e partir até ao próximo.

Ao final da tarde sentava-se na borda da plataforma inactiva e viajava. De permeio escrevia… anotaria rotas?... redigiria notas?... esperava… mergulhando num percurso só por si conhecido e, em segredo, transmitido ao caderno com capa de papel pardo que poisava sobre os joelhos como uma toalha onde se disporão os pratos com quem se repartirão momentos a recordar.

Ali ficava na beira da plataforma inactiva à espera do nada. Os comboios chegavam, pessoas saíam, entravam e os comboios partiam… aparentemente sem aguardar o que quer que fosse… permanecia à espera de… talvez que o tempo se dissolvesse…

A cada dia, quando o último comboio partia, olhava-o até que se perdesse no infinito, a caminho de destino nenhum… e só ao ter a certeza que já não pararia, que não regressaria, escrevia as últimas palavras… se levantava, fechava o caderno, tapava a caneta, guardava-os e caminhava de olhos no chão. Quem sabe se repetindo cálculos? Quem sabe se a tentar perceber a que distância estaria o comboio desse destino desconhecido?

Um dia chegou e não se sentou. Dirigiu-se à bilheteira e pediu uma viagem de ida, no último comboio, para destino nenhum… ouviu, como resposta, que essa não era nenhuma das estações do itinerário do último comboio. Pediu, então, um bilhete até ao local onde, todos os dias, o último comboio chegava e de onde, todos os dias, regressava. Sem identificarem a derradeira paragem, venderam-lhe uma ida. Pagou o bilhete e, nesse dia, caminhou até uma plataforma diferente, aquela onde eram deixados e recolhidos passageiros transportados pelo último comboio. Olhou para o funcionário que, com a bandeira vermelha nas mãos, dava o sinal de partida a cada comboio, andou até ele e disse-lhe: “Se algum dia o último comboio, depois de iniciar marcha se detiver e dele sair alguém que regresse aqui, por favor, entregue isto a esse alguém!”, e estendeu-lhe o caderno com capa de papel pardo. Boquiaberto, o homem pôs a bandeira vermelha debaixo do braço e pegou no caderno, sem tempo para pronunciar uma palavra… o último comboio acabara de chegar e só haveria tempo para ‘mudar’ de passageiros… trocou a bandeira pelo caderno e o caderno pela bandeira… uns instantes depois erguia o braço com a bandeira e quando o baixou nem olhou para o comboio, mas para o caderno que lhe havia sido entregue… tirando-o de debaixo do braço. Incrédulo parou no tempo e ao olhar para os carris já o comboio os abandonara com destino… voltou a olhar o caderno… abriu-o e viu textos, letras, citações, viagens, pensamentos, emoções, sentimentos, revelações e… a concluir cada um dos dias, sempre as mesmas palavras: “… antes de adormecer vou dizer baixinho: Boa-noite.....!”

[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]


terça-feira, 14 de abril de 2009

COM TUA VOZ

Foto de Johannes Strömberg

Fiz um desenho com tua voz
que guardei numa folha de segredo
dobrada em quatro para caber
numa pétala de sonho escrita
na transparência muda da saudade
calada na serenidade das entrelinhas
de ansiedades gritadas em delírio
por linhas de silêncio acatado
Num ledo início de tarde
fiz de tua voz uma canção
composta na pele da minha mão
para fazer sombra ao frio da noite
e em meu coração desenhar
um sorriso com a nitidez dum girassol…

CONVERSA COM SÉRGIO GODINHO


Foi ontem, ao final da tarde, que ele se dispôs a conversar sobre os livros que lê, ou que já leu e quis deixar como sugestão. Talvez como alguns outros dos que lá estavam presentes, fui porque o respeito, porque o admiro, porque é um escritor de canções cujas obras me arrastam desde a adolescência. Porque essas suas oferendas se mantêm actuais, sempre aprazíveis de serem ouvidas, mesmo quando algumas já rondarão as três décadas de existência.

Em conversa com Inês Pedrosa, que confessou dever-lhe a sua inclusão pelo universo de Milan Kundera, Sérgio Godinho falou sobre a forma como os filmes podem ser redutores da obra literária em que se basearam, e como isso também acontece quando um videoclipe dá um olhar muito exacto a uma canção. Falou da fronteira, se é que existe, entre o poema e a letra de canção. Disse que 90% das suas canções começam pela melodia e que, talvez por isso, se torna quase impossível dissociar a letra da música. Mas, digo eu, o que são as letras das suas canções que não poemas? O que são A Noite passada, Com um brilhozinho nos olhos, Às vezes o amor, 2º andar direito, Espalhem a notícia, Lisboa que amanhece, Romance de um dia na EstradaSenhora de Preto, e… tantas outras? Serão muitos os outros que também assim pensam. Inês Ramos será uma delas pois incluiu na sua antologia Os Dias de Amor o poema [que também é canção] A certeza do meu mais brilhante amor de Sérgio Godinho. E foi desse livro que ele falou sobre um poema [que recitou] de Joana da Gama. Confessou não se considerar um verdadeiro leitor mas ‘quando viajo ando com um livro debaixo do braço’. Ele que é um homem do Norte, ao passar para os livros de contos, referenciou Flannery O’Connor, autora de Um homem bom é difícil de encontrar, como uma profunda conhecedora dos valores dos sulistas norte-americanos e citou-a na ilustração dum confronto que abrange muitos países: ‘tudo é grotesco se for lido pelos do Norte, a menos que seja grotesco, pois nesse caso será realista’. Admitiu ser muito influenciado, nas suas escolhas de obras a ler, pelas recomendações das contra-capas. Disse ter sido por ‘culpa’ de Inês Pedrosa que leu As velas ardem até ao fim , de Sándor Márai. Um livro que avaliou como um ‘tratado de amizade sobre as profundidades da alma humana’. Revelou ter poemas, que não letras de canções, prontos para serem editados em livro. E quando lhe perguntaram se colocaria Ary dos Santos no ‘top 5’ dos letristas nacionais, respondeu com frontalidade considerá-lo como incontornável na poesia portuguesa, que terá tido uma capacidade única de se adaptar aos requisitos de fazedor de canções, mas que não gostava de um certo estilo de palavras que o Ary escreveu. Para quem, como eu, gosta muito deste último, foi extremamente gratificante ouvir outra pessoa que admiro ser frontal e verdadeiro assim. É em sua honra que hoje aqui deixo alguns, apenas alguns dos seus poemas superiormente musicados e cantados pelo próprio.

Obrigado Sérgio, por seres quem és!

segunda-feira, 13 de abril de 2009

QUANDO CHEGA O 'JOÃO PESTANA'

Foto de CathS

Era uma vez um marinheiro que passou a maior parte da sua vida no mar. Terá conhecido mais portos do que os dias parados na sua terra. Foram intermináveis os locais onde atracou entre praias, ilhas, baías, alguns deles periodicamente, outros espaçadamente repetidos. Talvez por força destes regressos, uns programados, outros esperados, outros ainda imprevistos, o marinheiro tinha o hábito de, em cada partida, levar consigo sementes, raízes ou troncos que plantava nesses lugares onde o seu barco atracava. Semeava-os para mais tarde perceber como evoluíam. Eram marcas suas que deixava plantadas pelo mundo. Pedaços de si que reapreciava a cada regresso. E por isso, no momento de retorno experimentou surpresas, confirmou crescimentos normais, teve desilusões. Algumas árvores cresciam mais do que esperava, outras não se haviam desenvolvido, algumas mesmo sucumbiram à sua ausência. Em cada porto, em cada ilha, em cada enseada, em cada praia, o marinheiro recolheu diferentes emoções que levava para a embarcação ao encontro da paragem seguinte, na expectativa de perceber que outra sensação lhe iria ser proporcionada.

Um dia, num certo porto, que visitava pela primeira vez, o marinheiro plantou um tronco duma árvore ainda muito jovem. Nesse dia o sol estava meio escondido atrás das nuvens e fazia um pouco de frio. Mal o marinheiro terminou de segurar o tronco à terra, as nuvens desapareceram e o sol amenizou a manhã. No dia seguinte, ainda antes da embarcação zarpar, o marinheiro não queria acreditar no que acontecera; o tronco plantado no dia anterior já dera folhas e algumas flores já despontavam nos ramos que se multiplicavam. O Inverno chegava ao fim, mas a Primavera ainda se faria esperar por mais uns dias. Como era possível assim ter acontecido? Não podia! Não podia ser verdade! Aproveitando o pouco tempo que faltava para a partida, o marinheiro foi confirmar se o tronco era o que tinha plantado no dia anterior… e, sem dúvida, era o seu tronco… com ramos… com folhas… com flores… mas era o seu ramo. Regressou ao barco, porém os seus pensamentos não se afastavam daquela verdade que não podia ser real. Ao longo da viagem, os seus camaradas de bordo tiveram de o chamar por diversas vezes para as suas tarefas. Estava ausente. A sua cabeça prendera-se àquele tronco que, em tão pouco tempo, se desenvolvera como se tivesse passado uma estação inteira; como se a Primavera já tivesse passado por aquela árvore a que dera vida, apenas, na véspera. A viagem teve de continuar, parou noutros locais, semeou outras árvores, mas os seus pensamentos regressavam sempre, teimosamente, àquela outra árvore. Quanto mais tentava evitar lembrar, mais impossível se tornava esquecer. Sem que nada pudesse fazer para o contrariar ficou impaciente pelo regresso, para verificar, para reconfirmar, para ter certeza de que não se tinha enganado, que não estava a sonhar. 

Acabou por voltar e a sua ansiedade não lhe permitiu esperar pelo final das manobras de ancoragem, saltou do barco, correu pelo areal e, quando chegou perto da árvore, não cabia em si de felicidade, mas teve de se sentar no chão para olhar surpreendido o seu tronco. Os ramos, as folhas, as flores estavam rigorosamente iguais àquela manhã seguinte ao dia de plantação. O marinheiro enfiou as mãos na cabeça, enterrou os dedos nos cabelos e abanou-a como se se esforçasse por não admitir o que os seus olhos viam. Sentiu uma mão no seu ombro direito e, relutante, olhou para aquele vulto que se intrometia entre o sol e o seu olhar. Era um velho, ou assim parecia, pelas longas barbas brancas e pelas rugas desenhadas na pele do rosto. Contudo o seu olhar tinha uma energia própria de quem acabava de abraçar a vida, mas a certeza de quem já passara centenas de anos por ela.

- Em que não acreditas, meu bom homem?, perguntou-lhe o velho.
O marinheiro explicou-lhe o que se passara desde que plantara aquele tronco. No final, como que pensando em voz alta, perguntou:
- O que poderá ter acontecido?
Pausadamente, o velho disse:
- Tê-lo-ás feito com mais convicção do que noutras ocasiões!
- Não! Não pode ser! Em qualquer lugar eu semeio com a mesma intenção. A minha vontade é apenas plantar, independentemente do local onde o estou a fazer.
- Admito!, respondeu o velho. Mas sem que tenhas consciência o teu coração nesse dia acreditou mais e, por essa razão ou simples coincidência, esta árvore também acreditou em ti.
- Não! Não pode ser! Tudo isso são razões irreais de mais para explicar esta realidade. Não pode ser!, repetia o marinheiro abanando a cabeça, recusando aceitar a evidência dos ramos, das folhas e das flores do seu tronco.
Com toda a serenidade, segurança e sabedoria dos anos, o velho voltou a dirigir-se ao marinheiro:
- Há coisas que o coração não sabe explicar, mas que só são possíveis de explicar pela vontade do coração. E por muito que o contrariemos, que o tentemos calar, a sua vontade é invencível. Mesmo que tentemos que esqueça, ele não o faz! E a sua verdade acabará por perdurar até que ele próprio encontre uma razão para arrumar essas memórias na gaveta dos seus segredos! Por isso, mesmo que não percebas, se queres ficar em paz contigo próprio, aceita a explicação que ele te dá! Só a sua vontade te poderá explicar o que de outra forma não tens capacidade de perceber!

AMANHÃ



Quando é o amanhã?
fica tão perto que já o vejo
já lhe cheiro as horas
já lhe toco com o desejo
Onde fica o amanhã?
ali no dia seguinte da vida
logo a seguir à noite
quando a manhã for despida
Quando fazes o amanhã?
nas palavras que te deixo escritas
nos sonhos por revelar
nas promessas de tuas visitas
Quando há amanhã?
no renascer de cada sol,
no breu da madrugada
quando teu olhar é meu farol

mas numa longa espera paciente
a madrugada não abriu a manhã
a presença duma vida ausente
revelou: já não há amanhã!

sábado, 11 de abril de 2009

SEM MEDO

Foto de CathS

Abre a tua janela
ajuda.me a parar o tempo
que nos arrastou para esta vertigem
Espera!, não partas já!
deixa.me sentir a tua mão em mim
e faz.me acreditar que não foi fugaz
o tempo que nos demos
que foram sentidas
as palavras que nos roubámos
e que não ficarão perdidas
nos silêncios feridos
Fica! só mais um momento!
e deixa a tua pele ser a praia
onde rebentarão as ondas de carícias
que descobri para ti
Mostra.me o teu sorriso
e recebe o brilho de cada estrela
como um beijo de mar
inventado para nele guardar
o mundo que mora no teu olhar
Não tornes vagas as memórias
dos gestos por trocar
imaginados em desejos
apagados pela razão
Deixa.me sonhar
que valerá a pena esperar
por uma estrela mergulhar
Não recuses a verdade do que sentes
pois se alguém não mente
é o coração!

Perdoa-me Mafalda a inspiração... aqui... e ali

NO LIMIAR DA TARDE


No limiar da tarde
o céu derrama-se sobre o rio
nuvens testemunham a entrega
naquela linha imaginária
para além do infinito do olhar
O rio corre para o mar
separando duas margens
águas tantas vezes navegadas
por tantas embarcações desbravadas
Duas margens separadas pela distância
repetidamente ligadas por vontades
... sob o olhar dos descobridores
a ponte liga Lisboa
a outra margem

sexta-feira, 10 de abril de 2009

PERCO-ME

Foto de Mal Smart

Perco-me na imensidão do tempo
que inunda de silêncio o dia
onde sobram minutos às horas
preenchidas de ausência
Perco-me no infinito do nada
que resta em ondas de dolência
impelidas pela inexistência de ruídos
arrastados à força da divisão
Perco-me na memória de vida
transplantada para novo rumo
corrente que ainda não conheço
barragem que urge superar
Perco-me no segredo das palavras
gritantes do que devo calar
emoções frustradas pelo eco da razão
sentimentos abortados por revelar
Perco-me na longevidade do dia
temendo o vibrar frio da noite
e quando o escuro suprimir a luz
perder-me-ei no incómodo da insónia
Perco-me na história recente
que sobre o mar da dor flutua
oiço em acordes repetidos
a melodia roubada à verdade nua

NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA


Foram recentemente descobertos, em local ainda por anunciar, estudos que provam que o passado não se apaga totalmente mesmo que essa seja a decisão politica, administrativa ou meramente pessoal. As investigações, baseadas em condutas de poetologia, pretendem provar que o presente fica tão mais marcado de passado quanto se deseje apagá-lo, esquecê-lo ou, mais grave ainda, ignorá-lo. Haverá presentes que não se dissociam do passado e passados que invadem continuamente o presente numa tentativa de marcar o seu espaço, de mostrar que continuam vivos. 'O passado mantém-se aceso enquanto não forem provadas razões que o não justifiquem!', pode-se ler no comunicado que chegou à nossa redacção. Os referidos estudos terão sido realizados por um eremita que terá expresso o seu desejo de ser poetólogo. Desconhece-se o seu percurso mas existem fundamentadas expectativas de que tenha cruzado território nacional. Melinda Carter, que integra o quadro editorial duma das mais prestigiadas revistas norte-americanas dedicadas à investigação científica, anunciou estarem a ser envidados todos os esforços para localização do mencionado eremita, na expectativa de que possam ser descobertos mais dados sobre a sua vida e eventuais outras revelações sobre o que poderão dizer as palavras que estão por detrás das letras com que são escritas. A direcção de informação da RTP mantém-se atenta a todos os desenvolvimentos e retomaremos a emissão, sempre que se justifique.

PRAZERES SONHADOS

Foto de John Parminter

Fecho os olhos e, num abraço de dúvida, deixo-me levar, guiado por asas dum rio a desbravar, até ao reino da fantasia onde o soberano padece duma enfermidade irrecuperável a que os doidos chamam de sensatez. Fecho os olhos e oiço as palavras que escreveste mas não chegaste a ler. Enquanto, a passos tímidos, a certeza ganha terreno à dúvida encostas tua cabeça no meu ombro como o sol rompe a escuridão da madrugada, mais por necessidade do que por dever. O meu coração descansa sobre uma aceleração irrecuperável e poisas teus dedos sobre a minha mão forçando intervalos onde penetram demandando um enleio aguardado. Sem que haja força para suster o ímpeto do que é desejado, meus lábios pousam na tua pele arrefecida pela longa espera calada. Cegos percorrem a direcção que os levará a encontrar a macieza sonhada dos teus. São torrões de adulação que os espera na humidade que lhes ofereces quando os deixamos colarem-se e perderem-se em carícias arrebatáveis. Explorando as mais susceptíveis conjugações do prazer, a minha pele é percorrida pela disquisição incessante da tua língua por um novo instante onde recomeçar a devolução do sentido às mãos, entretanto, perdidas em areais de carícias onde rebentam ininterruptas ondas de paixão. Mantenho os olhos fechados pois continuas a ler as palavras que não me ofereceras, a madrugada está prestes a partir e quando o sol trilhar o caminho dum novo dia, os loucos rir-se-ão da insensatez de entrar no reino do devaneio onde o soberano, impondo os sintomas da sua doença, irá gritar a verdade aos que teimam invadir o seu território em demanda da felicidade que se desfaz na dissolução dum sonho.