terça-feira, 30 de junho de 2009

PINA BAUSCH

1940 - 2009




... mais um génio que nos deixa!

... colocou o teatro na dança ou, se preferirem, dançou de mão dada com o teatro. Pegou no vocabulário clássico da dança e moldou-o ao quotidiano. O ‘normal’ para ela não era suficiente. Por isso procurou ir além dele. Por isso desconstruiu o formalismo, a forma, o formal. E inventou formas próprias que marcaram a diferença, mas também a origem para muitos seguidores. Criou, em muitos, a ilusão de que o cidadão comum podia subir ao palco e ser bailarino, desmistificava-a quando os seus intérpretes passavam por uma longa, minuciosa e criteriosa audição de várias dias, em que os ia progressivamente eliminando. Levou palavras gesticuladas do dia a dia, às frases coreográficas que marcaram algumas das mais enigmáticas obras que criou como Café Müller, Viktor ou 1980. Levou a vida ao palco onde dançou. Oferecia pedaços de vida aos que, na plateia, tiveram oportunidade de sentir a força da existência no palco ou na tela. Hoje deixou para trás a vida. Não chegou a concluir um dos seus próximos projectos: Pina, o primeiro filme sobre dança, em três dimensões, numa parceria com Wim Wenders.


QUERO FICAR EM JUNHO

Foto de Sonja Valentina


Quero morar em Junho
e cheirar as manhãs de erva regada,
sentir o calor madrugador
que ainda não pega na pele,
olhar o azul do céu
em convite ao mar que se aquieta

Quero ficar em Junho
e a cada dia comer as últimas cerejas,
ouvir os recreios gritarem
em sorrisos de calções infantis,
deitar-me sobre o feno a dourar
de olhos fechados ao sol,
sermos dois à sombra
do castanheiro ainda sem sede

Quero perdurar em Junho
e sentir as sardinhas a assar,
as festas a povoar as ruas,
as cervejas a escorrer nas gargantas
e as fontes a fluir nos umbrais
da Primavera que se esfuma

Quero parar em Junho
quando a tarde mergulha
nas horas roubadas à noite,
parar e não prosseguir,
acreditar que Junho não acaba
até que me canse de esperar
e tenha de correr atrás
do ano que me fugiu.


Passos com olhares, ao invés de ampliações, são palavras trazidas pela inspiração e posteriormente complementadas pela objectiva do olhar da Sonja.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

DEPOIS

Foto de Jennifer S

Provo na pele
o sabor que me deixaste
na noite
em que os corpos se ceifaram
ao estio solitário
de sonhos mergulhados na sede

Seco nas mãos
o cheiro de carícias arrancadas
à vontade humedecida
de abraços desordenados na angústia
de estenderem
palavras mascaradas de respeito

Cravo na garganta
o travo ardente dos beijos
sugado na paixão
das bocas coladas em desvario
numa busca cega
da eternidade finada no momento

e repouso
na hipnose deixada pelo amor
quando acorda na manhã
herdada pelo desfalecimento
do desejo


domingo, 28 de junho de 2009

DOIS DIAS PARA ESQUECER


O que pode levar um homem, criativo publicitário de sucesso, casado, com dois filhos maravilhosos e uma vida desafogada, ao celebrar 42 anos colocar em questão tudo o que construiu, tudo o que possui? Renunciando à formalidade que nos obriga a cumprir regras de boa educação e calar, quase imperceptivelmente, muito do que, tantas vezes nos apetece dizer, começa a assumir a sinceridade, a frontalidade, a verdade, obviamente magoando, opondo-se, criando uma onda de antipatia à sua volta. O que pode levar um homem a desfazer a sua sociedade empresarial? A discutir com a mulher? A pôr em causa a perfeição dos desenhos que os seus filhos lhe oferecem como prendas de aniversário? A desafiar todas as regras que sempre terá cumprido? A confrontar, um a um, todos os amigos que se reúnem para uma festa surpresa? A despedir-se da filha antes de partir, anunciando-lhe que irá para longe e não voltará? A ferir-se com o reconhecimento na manhã seguinte, antes da partida definitiva, que a vida continua sem ele, que os seus filhos mantêm viva a alegria de brincar, mesmo na sua ausência? A partir para destino longínquo arriscando na condução, na ofensa àquelas com que se cruza? A apoiar um homem a quem dá boleia? A ir ter com o pai que o abandonara e à mãe, quando tinha treze anos? A confrontá-lo com a sua ausência enquanto avô? De onde vem toda esta sede de viver como se tivesse de ser transparente… como a água mais límpida do rio onde vai pescar com o pai?

São questões a que não posso responder sob pena de revelar todo o interesse que considero revestir Dois dias para esquecer. Recomendo vivamente este filme de Jean Becker, Deux jours à tuer no original, o qual parece estar em exibição unicamente em Lisboa… para quem não o conseguir ver e tiver curiosidade de saber mais, estou a preparar uma visão mais pormenorizada e reveladora sobre o filme. Terei todo o prazer em facultá-la.

RESGATA DE MIM O OLHAR

Foto recolhida aqui


Resgata de mim o olhar
que um dia deixaste no meu
a retinir
como o gotejar duma fonte
que não se deixa secar

Resgata de mim esse olhar
que em mim deixaste a sonhar
brilhante
como o sorriso duma labareda
que não se deixa molhar

Resgata de mim o olhar
que um dia me ofereceste
de surpresa
como a paixão dum poema
que não se deixa silenciar

Resgata de mim aquele olhar
que em mim um dia ateaste
sem anunciar
como os bagos dum areal
que não se deixam abraçar

Resgata de mim o teu olhar
e devolve-mo no infinito do horizonte,
num convite sem palavras, olha-me,
pede-me para entrar nele em segredo
como o céu se atraca no mar
como a chuva penetra na sede
e deixa-me perder nele
para que eu não me resgate
nunca
do teu olhar.

DE NOVO À SUA BEIRA

Foto do meu Nokia

Esticam-se as pontes sobre o seu leito, repetidas pela sofreguidão do chamamento das duas margens. Embarcações excedem-se para serem mais velozes do que a sua corrente. As janelas multiplicam-se em incontáveis vidros para o fixarem à sua passagem. Estende-se a encosta por ruelas gastas na anarquia duma vida que foge das regras. No alto, o largo episcopal contrasta a sua magnificência com a planície de telhados que se espalham a seus pés. A manhã esgaça-se numa última descida, de novo ao encontro do rio; imperturbável rumo à foz, como se não desse pela minha presença, como se nada lhe dissesse o meu regresso, como já não me reconhecesse… quatro anos depois.

sábado, 27 de junho de 2009

DISTRACÇÕES

Foto de Zsolt Arkossy


Há uma característica comum a demasiados governantes, dirigentes, líderes e outras camadas de detentores de poder. Refiro-me à necessidade de ignorar, omitir ou ocultar o que os antecedeu. E quando o referem é, habitualmente, com a necessidade de se mostrarem mais capazes do que aqueles que, mal ou bem, criaram as pernas da cadeira onde agora se sentam. Repito que o tenho observado quer em mais altos dignitários, quanta nas mais singelas posições de direcção.

Atente-se no exemplo de uma das mais credíveis e respeitadas instituições nacionais. Se realizarmos uma busca no seu sítio institucional, só encontraremos uma referência ao Dr. José de Azeredo Perdigão, na área sob a responsabilidade do Serviço das Comunidades Arménias… !?!...

Para quem eventualmente possa não saber, o Dr. Azeredo Perdigão foi o primeiro presidente da Fundação que Calouste Sarkis Gulbenkian decidiu sediar em Lisboa. Dirão alguns que terá tido influência, enquanto advogado do filantropo, nessa decisão… creio não ser possível negar que terá sido responsável pela sustentabilidade e crescimento da Fundação. Foi sob os seus humanísticos desígnios que a instituição substituiu o Estado português naquilo que o último não soube, não conseguiu, não pôde, ou não quis intervir, quer a nível social, quer a nível cultural. Contudo, transparecerá agora ao menos curioso observador que o trabalho por si desenvolvido não terá sido digno de ser [re]conhecido… quiçá terá não cumprido as determinações do testamento do fundador… tal o evidente esquecimento a que é vetado.

Quando assim acontece, e se não é propositado… só admito que seja distracção, dos que agora dirigem, pensar que sem a acção dos seus antecessores poderiam um dia assumir-se como dirigentes da instituição que foram outros a criar, desenvolver, fortalecer. Perdoe-se-lhes, pois, a desatenção.

É que não serão só os historiadores a fazer a História. Cada um de nós deve sentir-se na obrigação de o fazer. Ou não nos honraremos nós que os nossos filhos, um dia, falem aos seus filhos de quem foram os seus avós?

sexta-feira, 26 de junho de 2009

TALVEZ...

Foto de Nanã Sousa Dias


Terão perdido o fogo, as palavras
mas não o aroma que as incitou
cheiram-me a ti quando as escrevo
matam-me a sede quando te ausentas
Talvez só eu as ouça
talvez só eu as sinta
talvez só eu as descubra
no mar, na pele, no vento,
na surpresa de cada regresso.

Terão perdido o fogo, as palavras
mas não o lume em que arderam
sinto-lhes o calor quando as escrevo
aquecem-me a alma quando as lês
talvez só eu o veja
talvez só eu o sinta
talvez só eu o descubra
nas estrelas, no coração, na saudade,
no sabor de não perder.

Porque talvez…
só tu percebas o que eu lembro
quando não te esqueces de mim.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

UM SEGREDO

Foto de Elhanh


Resolvi desvendar-te um segredo
divido entre o coração e a razão,
duas faces duma mesma verdade
diluídas no pulsar da ilusão;
deixo morrer a vontade,
renuncio à voz do desejo,
esqueço o ensaio dum abraço,
o sabor não provado dum beijo;
acolhe-me o mar tranquilo,
como racional sou aplaudido,
são incertos os passos dados
correndo do coração foragido;
deixo-me navegar na espera,
na incapacidade de desistir,
na esperança dum olhar,
duma palavra na tua boca sorrir;
e é a tempestade do amor
que me molha até à alma,
num dique de manhãs revoltas
desenho uma madrugada calma;
e sou levado pelo prazer,
trucidado pela dúvida da incerteza,
fecho-me no silêncio das muralhas
desta paixão tua fortaleza;
num segredo abrigo duas verdades:
a do coração e a da razão,
vivê-las eternamente
é, com certeza, evidente ilusão!

quarta-feira, 24 de junho de 2009

SEGURA-ME!

Foto de Kevin Ng

Segura-me!
No limite do dia
não deixes que anoiteça!
Na raia da esperança
afugenta a dúvida!
No limiar da paixão
lembra-me a amizade!
No umbral da união
segreda-me o eu!
Na fronteira da mágoa
acende a confiança!
No desprender da lágrima
solta-me o sorriso!
À beira da partida
segura-me a mão,
não me deixes fugir a infância!
Segura-me!
Alimenta-me a vida!




terça-feira, 23 de junho de 2009

EM BRANCO

Foto de King Douglas

Sinto-me uma página vazia
esquecida, desconhecida, incógnita
um espaço desocupado sem vida
Sinto-me um lugar desabitado
desprovido, imperceptível, sem luz
uma folha branca ignorada
E nada espero, mas anseio
e nada aguardo, mas desejo
um olhar
a necessidade de tocar
uma palavra
a precisão de parar
para reparar
para escrever
e contemplar.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

CASULO [abstracto]



Vivo num casulo
feito de pensamentos
enrolado em segredos que não sei desvendar
Vivo num casulo
feito de estradas
traçadas num mapa que não sei adivinhar
Vivo num casulo
feito de clausulados
estendidos em leis que não sei exercer
Vivo num casulo
feito de noites iluminadas
por vozes que não me sabem entender
Vivo num casulo
feito de línguas
espalhadas em idiomas que não sei traduzir
Vivo num casulo
feito de saudade
à procura de uma fresta por onde sair


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

domingo, 21 de junho de 2009

O CAVALEIRO ANDANTE

Foto de Franco Farina


Cavalgara noites sem fim desde que a donzela silenciara o diálogo. Cruzara céus de quatro estações e o seu manto servira-lhe de cobertor e leito. As palavras continuaram a ser seu sustento e às memórias ia recolher o suco que lhe saciava a sede de prazer. O seu cavalo alado estava exausto, mas nunca se recusara a imprimir velocidade para lhe satisfazer a ansiedade de chegar, nem para retroceder na tentativa de reconhecimento de trajectos já percorridos. Atravessara pontes reais, idealizadas, construídas, inventadas. Sobrevoara rios, campos de girassóis, cidades de sol e outras com luminosidade única. Rompera noites, abrira dias e gastara horas e horas, tempo e tempo que não vira correr. Teve quase tudo em quase nada e em quase nada procurou quase tudo. Adormeceu nos areais das praias na esperança de ver uma estrela mergulhar. Afundou-se ele próprio na inocência do olhar duma criança e falou com pessoas a quem não precisou chamar de nada…

Agora estava ali. Parado. Quiçá perdido. Sem saber por onde mais correr. Para onde mais voar. Ali naquela planície onde o sol se encobria atrás de nuvens de saudade. Soprava um vento ameno de memórias e o cavalo repousava à sombra duma árvore com ramos de pensamentos. Olhou as palmas das mãos e tentou descobrir nas suas linhas, mapas que lhe mostrassem o caminho. Leu-as como se tivesse à sua frente um livro de vida. Mas nada encontrou. Nem rota, nem coordenadas, nem orientação, nem bússola, nem pontos cardeais. Apenas um mergulho abíssico no vazio preenchido de nada. O desânimo convidava-o à desistência. Havia, porém, uma força que o impedia. Era como se o obrigassem a fazer luto pelo corpo que não vira morto. E teimava em recusá-lo.

Numa concha de duas mãos colheu uma imensidão de grãos. Procurou o seu, aquele que era ele próprio no areal da confiança. E não se encontrou! Deixou escapar a areia por entre os dedos. Alisou-a e com o indicador marcou um ponto. Como quem desenhasse do fim para o princípio. Acima desse ponto fez subir uma linha que se abriu num círculo que não se fechou. Como um ciclo que não se cumpria. Como uma interrogação sem resposta.

Impaciente não sabia como mais procurar a certeza. Sabia que a sua assinatura continuava válida, mas… um pacto precisa de pelo menos duas. E a outra onde estava? Ter-se-ia esbatido? Apagado? É que não se podiam ver aquelas assinaturas. O pacto fora assinado em silêncio. Sem tinta. E ele não tinha forma de o sentir. E ele não conseguia admitir que o pacto já não existisse… tão forte fora a vontade de o assinar…



MAIORCA

Foto de José Alfredo


A cena aberta permite um olhar raso sobre o palco. Quase como se assumíssemos o lugar de Pedro Burmester a olhar aqueles para quem vai tocar. Destroços dum naufrágio parecem flutuar sobre os reflexos de luz que aquecem o linóleo. São painéis e corpos, estes exaustos, que acordam dum repouso forçado pelo desaforo da sorte. Conforme os painéis se personalizam enquanto peças dum puzzle tridimensional, os corpos, numa voz gestual cujo movimento se dimensiona de fora para dentro, vão-se metamorfoseando em diversas existências. O corpo cego que se expressa num movimento falante, o movimento cego que grita um corpo exuberante. O humor também marca presença. E o movimento vai unindo-se na perfeição com o cenário. São perfeitas muitas soluções cénicas idealizadas e concretizadas com mestria. Intercalam-nas momentos coreográficos de sublime poesia como o do corpo masculino que atravessa a cena num registo de esforço quotidiano agonizado por uma tentação diabólica, ou o do corpo iluminado em diálogo uníssono e perfeito, primeiro, com o ser amado ou a certificação da razão, e depois alargando-se ao grupo, aos seguidores, às massas que lhe respeitam as orientações. Mas quando se recorre a Chopin, ainda que respeitando a diferente sensibilidade que possa despertar a cada um, incomoda percepcionar que o movimento crie mais sinergias com as peças cénicas do que com a própria música. Senti como inconveniente que, em alguns momentos, o manuseamento dos elementos cénicos criasse ruídos que se sobrepunham ao piano de Burmester. Apetecia-me que os muitos instantes inspirados se associassem como um todo e não nos deixassem o sabor de corpos isolados flutuando à superfície do oceano. Maiorca é como um poema povoado por inúmeros versos lindíssimos que, agora, precisam ser limados para se conjugarem e resultarem numa ode MAIOR.

Foi sábado à noite, no Olga Cadaval, em Sintra, integrado na edição 2009 do Festival de Música e Dança, que foi apresentada a mais recente criação de Paulo Ribeiro, com Pedro Burmester a interpretar, ao vivo, 24 Prelúdios de Fryderyk Chopin.

sábado, 20 de junho de 2009

POR UM INSTANTE

Foto de Philip Perold


Se tu fosses o meu olhar
por um instante
no momento em que me ajoelho
frente ao mar
não para orar
mas para observar
a partida das ondas em cada regresso
a certeza da dúvida a cada chegada
Se tu fosses o meu olhar
por um instante
quando prolongo o meu pensamento
até ao horizonte no infinito alcançável
dum desejo na distância indefinida de contemplar
Se tu fosses o meu olhar
por um instante
na precisão das palavras que escrevo
semeadas na pele da emoção
vindimadas em bagos de ternura
Se tu fosses o meu olhar
por um instante
sempre que é meu desejo te ver
nada percepcionarias adiante
pois seria a tua própria imagem
que tentarias obter.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

HÁ UM GRITO DE SILÊNCIO

Foto de Alexander Kharlamov


Há um grito de silêncio
quando o gelo se quebra
e o crepúsculo rompe a madrugada
quando o prazer se exalta
e a Primavera desflora a virgindade

Há um grito de silêncio
no acorde que se não ouve
na repressão amordaçada
na mágoa que não se solta
na verdade por desprender

Há um grito de silêncio
quando o sono não acorda
e a noite se eterniza
quando o sonho se acomoda
na ausência dum corpo

Há um grito de silêncio
nas palavras por entender
nos beijos recusados
no abraço desapertado
no desejo que não sentiste

quinta-feira, 18 de junho de 2009

QUERO VOAR E...


Desculpa incomodar-te,
quero voar e…
as tuas palavras
são a minha rota e…
cada vez que me afasto,
no rasto que deixo,
ficam sombras dos teus passos e…
a cada tempo que percorro
perco-me nos céus
que me abriste e…
é com uma quilha de saudade
que enfrento o vento do silêncio e…
nas tempestades com que me cruzo
lembro as lágrimas que choraste e…
desculpa incomodar-te,
é que eu quero voar e...
não o sei fazer sem ti.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

E DEPOIS DO ADEUS



E depois do adeus ficarão as recordações… as canções de que ainda lembro as letras… melodias que continuarei a trautear porque esqueci, ou não sei, os poemas que musicou. E sempre que haja uma Flor sem tempo, haverá Gente que o lembrará porque as suas composições não se silenciarão. Não, não Voltarei a vê-lo, pois partiu. Mas a sua memória permanecerá em todos os que ouviram as suas obras. E mesmo que o tempo esporadicamente o esqueça, as suas músicas relembrarão uma Festa da Vida. E hoje, no dia em que nos deixou, digo-lhe até sempre JOSÉ CALVÁRIO!


REGRESSO

Foto da minha Canon

‘Se o leite vem quente para quê aquecê-lo até que ferva?’, assim me questionava a mim mesmo, algumas vezes, quando o meu tio chegava com ele, acabado de ser extraído da vaca, numa vasilha de alumínio e o passava para um fervedor antes de o pôr ao lume. A porta da cozinha, tal como todas as janelas do rés-do-chão do lado poente da casa, estendia-se sobre uma vasta área de laranjeiras que, no Verão, se carregavam de pequenas bolas verdes à espera do tempo para amadurecer. Foi dessas laranjeiras que vi, mais do que uma vez, meu tio voltar com os seus troféus quando transportava, numa ratoeira, uma toupeira apanhada nos corredores das raízes daquelas árvores. Da cozinha guardo o cheiro, pela manhã, a pão algarvio torrado como complemento do tal leite a que se juntava um pouco dum produto parecido com Nescafé.

Preparado para a praia, e antes de partirmos, havia sempre tempo para umas brincadeiras, a solo, com a bola. Uma meia de dúzia de vezes essas habilidades me provocaram lágrimas ao ver a bola mal direccionada ir embater e partir uns pormenores decorativos que ornamentavam as janelas do rés-do-chão da casa. À frente da mesma havia um terreno que se prolongava, para a direita, pela frente do estábulo, até ao poço, em frente à garagem, e depois para um pomar onde residia um tanque, local de alguns dos meus sonhos onde me deliciava banhar acompanhado das rãs que faziam dele o seu território. Foi nessas zonas que retirei as rodinhas de trás à bicicleta verde. Foi em torno do poço que dei muitos tombos que me marcavam os joelhos com feridas sobre feridas. Foi ali que aprendi a andar de bicicleta.

Todas as manhãs o Fiat do meu tio nos levava até à Praia da Rocha. A caminho de Lagoa parávamos em Poço Partido para saber se havia correio para a Horta do Patrício. Depois de Lagoa, e antes de chegar a Estombar, havia uma passagem de nível. Eram longos os minutos das esperas até que a conseguíssemos atravessar. À estação de Estombar fui algumas vezes, com o meu tio, ao encontro de algum familiar que havia feito a viagem, desde Lisboa, de comboio. O meu tio era natural de Estombar, um povoado branco, salpicado com as suas chaminés cor de tijolo. Era à sua terra natal que meu tio ia encomendar a carne que se levava somente no regresso a casa, à tarde.

Um pouco depois da Mexilhoeira da Carregação, onde se voltava a perder mais algum tempo com outro cruzamento, a estrada curvava para a direita, e para os que não quisessem seguir para Ferragudo, em direcção à ponte sobre o Arade, que entrava em Portimão. Um dia o meu tio decidiu parar antes dessa curva e, quando lhe perguntei o que acontecera, recebi como resposta um pedido de calma. Passado algum tempo atravessavam a ponte, na nossa direcção, um manto de ciclistas. Era a Volta a Portugal em Bicicleta. Na minha frente vi passarem Joaquim Agostinho, Fernando Mendes, Leonel Miranda, Firmino Bernardino, Emiliano Dionísio, entre tantos, mas tantos dos meus heróis.

Quando precisava de reforço financeiro, meu tio dirigia-se ao balcão, em Portimão, da entidade bancária onde tinha conta. Deixava o cheque que só depois de almoço poderia ver saldado. Tanto quanto me apercebia era necessário confirmar com o balcão originário a provisão da referida conta. Como não havia internet, nem outras soluções entretanto desenvolvidas, o balcão em Portimão tinha de ligar para Lisboa, e através dum método pré-histórico, confirmava a provisão pretendida.

Foi na Praia da Rocha que, munido com as barbatanas que a minha madrinha me comprava numa loja de brinquedos situada do lado de esquerdo da rua que desembocava perto da estação de Portimão, eu tirei as minhas braçadeiras [ou bóias se preferirem] e aprendi a flutuar sobre a água. Era na Praia da Rocha que eu tentava dar um número de mergulhos suficiente para justificar os figos com que me presenteava na quinta.

Ao almoço, comíamos no Económica, um restaurante que vivia perto de onde agora reside o BES. As filas de espera eram um ritual ao qual, mesmo os clientes mais assíduos, não se esquivavam. O meu companheiro de refeição era quase sempre um linguado cujas extremidades se precipitavam para fora dos limites do prato.

A sesta foi obrigatória até muito tarde, porque toda a casa a fazia. O período entre o final da mesma e o jantar, tanto poderia ser preenchido no banho de tanque, como com uma nova ida à praia, agora na área do Carvoeiro.

À noite nova viagem até Portimão levava-nos à esplanada da Casa Inglesa. Mais uma espera, agora de mesa que vagasse. No quarteirão atrás havia um cinema com sessões ao ar livre. Ao passar por perto, o som dos filmes despertavam-me a curiosidade do que se sentiria quando se vai ao cinema. Era num quiosque ali perto que o meu tio comprava a Capital acabada de chegar, algumas quatro horas depois de sair à rua em Lisboa, por 'loucos' que faziam Lisboa-Algarve de automóvel na ânsia de conseguirem chegar sempre mais cedo do que no dia anterior.

Aproximadamente, três décadas mais tarde as alterações são radicais. Muito já desapareceu. O meu tio já nos deixou a sua ausência. O leite já se compra pasteurizado em pacotes. A quinta já foi vendida. A estrada já se transformou numa sequência interminável de rotundas e não sei se os ciclistas ainda percorrem alguma via perto de Portimão. O dinheiro já se levanta numa caixa automática. O Económica já não existe. O cinema ao ar livre também desapareceu. As esplanadas da Casa Inglesa estão mais vazias. E os jornais chegam à mesma hora a diversos pontos do País.

Resta o pão que continua a ser magnífico torrado, ou mesmo simples com manteiga. Permanecem os rochedos de toda a orla entre a Rocha e o Carvoeiro. É o mesmo o mar com temperaturas amenas. É ainda viva a capacidade de recordar todos estes momentos que me trazem de volta uma idade em que era tão fácil pintar a vida da cor da felicidade. Onde quer que estejas, obrigado tio por me permitires escrever estas palavras.


COLO

Foto de Diane Varner


A manhã entrava pela janela. Eu saía por ela. Cruzava-me com o frenesim dos que já corriam para a capital, no inicio de mais um dia de trabalho. Confrontava-me com o começo de mais um dia sem rumo. Mais um dia perdido. Desaproveitado. Mais um dia para riscar no calendário. Menos um dia para viver. Mais um dia na vida sem destino. Quando… senti as tuas mãos nas minhas pernas. A tua cara ensonada sorria para mim, com um olhar semicerrado. Elevei-te ao nível dos meus ombros e encostaste-te num deles. Ao meu colo deste-me um abraço onde derreto toda a minha ternura física. E ficámos assim, durante breves instantes. Porque no teu abraço senti o colo que todos os dias peço à vida… e não consigo sentir ela dar-me.

terça-feira, 16 de junho de 2009

NA MÁGOA DAS TUAS PALAVRAS

Foto de kiki 123


Na mágoa das tuas palavras

desdobro as folhas com

cheiro a cor do silêncio

paira um vislumbre seco

no odor do teu olhar

verde e por vezes negro, e

sinto a noite que não se escreve.

Queria tecer com seda,

mas no linho do teu vestido

não consigo vivacidade, e

nos tons neutros do teu sono

sou um fantasma, com água e terra

planto um plátano sem chave

que cresce no espaço aberto

do céu que se abraçará no mar

e renascerá quiçá um sorriso no teu rosto


A partir do poema Portas escrevi algumas linhas em que a © Piedade Araújo Sol intrometeu as suas.
Assim nasceu
Na mágoa das tuas palavras

segunda-feira, 15 de junho de 2009

NOVIDADE

Foto de MarieM


A novidade rompe a pela da vida com o mesmo fulgor com que o recém-nascido abraça a primeira inspiração, com a mesma inocência da virgindade, com a mesma pureza do desabrochar das folhas. Sempre que uma novidade se destapa no céu da rotina, iludimo-nos com a inconsciente expectativa de que ela se molde aos nossos conceitos pessoais de perfeição, ao esboço dos nossos desejos, à formatação das nossas carências.

Essa novidade poderá ser um novo ser, um novo trabalho, uma nova habitação, uma nova viagem, uma nova amizade, um novo livro, uma nova paixão.

Enquanto acreditamos que esse perfume em nós embebido, desta vez é que irá ser eterno, a erosão vai trilhando o seu caminho. Enquanto não duvidamos que desta vez é que a cor será a nossa preferida, não nos apercebemos como ela se vai esbatendo e, como noutras situações, desbota exactamente numa infinita paleta em que não existe a nossa pigmentação eleita. E enquanto juramos fidelidade a essa novidade, as forças capazes de o desacreditarem, apontadas a nós, vão sulcando o seu caminho.

E quando constatamos que a novidade já o deixou de ser, somos incapazes de segurar o que quer que seja para além da novidade. E o único prazer sobrante é a esperança de que seja breve o tempo que nos separa duma nova novidade.

domingo, 14 de junho de 2009

FINAL

Foto de Marius Olsen


Parou o carro. Desligou a ignição e estagnou naquele desconforto renovado de ter de entrar em casa. Ao longo do dia convencia-se de que seria hoje o dia diferente. Estimulava-se a si próprio querendo acreditar que seria hoje o dia em que a normalidade regressaria. E quase acreditava. Mas quando se aprestava para subir e passar a porta, sabia que a casa ainda estaria vazia e o regresso dela só aconteceria mais tarde. Todos os dias mais tarde. Cada dia mais tarde.

Sentado ao volante abriu as páginas do livro em que era protagonista. Tão longe estavam os dias das não dúvidas, em que tudo pareciam certezas eternas de tão seguras e inquestionáveis se mostravam. Aqueles dias em que um momento sem estarem juntos, ou em comunicação, doía no peito como se pequenas partículas lhe fossem arrancadas. Doía tanto quanto a indiferença do presente. Onde estavam os momentos em que o futuro se revelava só deles? Sem a mais ínfima possibilidade de assim não ser. E os projectos nasciam de sonhos sem que houvesse um pormenor que não fosse necessariamente decidido pelos dois. Onde estava o tempo em que ninguém mais no mundo existia para ela, do que ele, e ele para ela? Quão longe estava o tempo em que um simples olhar era suficiente para perceber que eram únicos um para o outro. O tempo em que se fechavam para o mundo, dentro do universo inviolável que era só deles.

Imperceptivelmente as certezas desvaneceram-se, os segredos deixaram de ser necessários, o mundo alargou-se, assim como os olhares. Os sonhos deixaram de ser desejos para se tornarem objectivos. A presença do outro deixou de ser uma necessidade para se tornar um conforto. O futuro continuou a ser a dois mas em passos dados lado a lado e não como se fossem únicos. O universo que havia sido só deles abriu janelas.

Descuidadamente os segredos passaram a ser necessários. As dúvidas tomaram o lugar das certezas. Os olhares deixaram de parar onde antes fora impensável não estarem. Outros objectivos tomaram conta dos desejos e dos sonhos. A partilha de espaço comum passou a ser uma obrigação. O futuro começou a querer dizer tudo menos continuação. O universo que fora deles desapareceu engolido pelo mundo.

Hoje pouco ou nada restava dessa força que os fizera sentir inseparáveis. Hoje não existia nós. Hoje havia um final de história impossível de voltar a ler, de recuperar o meio, muito menos o início.

Abriu a porta, pegou no casaco, saiu. Enquanto a porta se fechava deu os primeiros passos em direcção a casa. Activou o fecho centralizado das portas e concluiu que tinha terminado o prazo de validade do seu casamento.


Há uns dias atrás, no meio dum comentário deixado pela Luísa a um dos meus posts, encontrei umas palavras que me sugeriram aproveitá-las para escrever este texto hoje publicado.


sábado, 13 de junho de 2009

NA QUIETUDE DA TARDE

Foto de acrux

Na quietude da tarde
procurou quebrar a placidez do rio
subiu a um ramo
para ver no espelho das águas
o reflexo da infância
a nudez das árvores
cobria-se de neblina ribeira
o tojo seco humedecia-se
na máscara de Outono
que a ribeira calava
na sua profundidade corria a vida
longe do olhar indiscreto
de quem procurava quebrar o silêncio
para se ouvir viver

sexta-feira, 12 de junho de 2009

A SOMBRA DAS PALAVRAS

Foto de Jason Langley

Visto a sombra das palavras
e ajusto-as às súplicas do desejo,
destilo-as letra a letra
para lhes esgotar todas as intuições.
Naufrago na nitidez do olhar
crente de lhe ler as veredas,
percursos em segredo sulcados
até chegar à campina onde me derramo.
No deserto dos silêncios adormeço
rumores cicatrizados na saudade
e escondo cada abraço oferecido
num sótão inventado no peito.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

LUGAR SEM REFERÊNCIA

Foto de Nanã Sousa Dias


Eu quero ser o sítio
onde duas mãos se dão

Eu quero ser o lugar
onde dois lábios se tocam

Eu quero ser o momento
onde dois olhares se descobrem

Eu quero ser esse lugar,
em sítio nenhum,
onde dois seres se sonham