segunda-feira, 31 de agosto de 2009

CONFISSÕES EM JEITO DE AREIA NO MAR

Foto de Eric Frey


Como a areia que deambula pela água em busca do poiso, existe em mim uma ansiedade que alimenta as palavras, que domo no corpo e me sinto incapaz de serenar na alma. Essa inquietação que os pequenos grãos transportam enquanto a corrente e a ondulação não os deixa tomar o seu lugar, escreve-me linhas como estas, tranquilizantes da não imersão no silêncio, desenha-me saudades na pele que a razão me convence irem ser saciadas num amanhã e só a alma sofre com a inexistência de oxigenação. A indefinição que esse todo, desagregado pela altivez do mar, sofre, escreve-me emoções no papel, desconforto no corpo e abre-me um túnel escuro na alma. E quando a areia tomar o seu lugar, concedendo transparência à agua, talvez as minhas palavras tomem a tranquilidade dos ciclos das marés, talvez a pele busque o fresco das águas após um repouso no areal, talvez a alma se entregue ao céu, para receber carícias das estrelas. Provavelmente serei como os grãos de areia à espera de se afundarem no mar. Diz-me tu em qual irás desaguar…

domingo, 30 de agosto de 2009

E DEPOIS?

Foto de Chris Ross

E depois?

E depois quando o fogo não tiver
[mais por onde arder?

E depois quando só houver mar para o rio correr?

E quando as palavras esgotarem os significados?

E as vozes tiverem sempre os mesmos sons?

E a dança se tornar uma marcha cadenciada
[por passos adivinhados?

E só as luzes da ribalta iluminarem a uma distância
[cada dia maior?

E a música se tornar um silêncio
[incompreendido?

E depois?
[quando chegarmos à última página

e tudo tiver sido revelado,

o que nos fará voltar ao início?

ler de novo o livro...

descobrir nele

um novo antes

que nos faça desejar tudo
[de novo...

sábado, 29 de agosto de 2009

ESCONDES TEU DESEJO

Foto de moses stell


Escondes-te
no anonimato das horas
para me seguir

e eu não sinto
não vejo teu olhar
não ouço tua voz
não pressinto tua presença

Silencias
o desejo de chegar até mim
e eu não te toco
não te falo
não sinto tuas mãos
não desvendo teu suspiro

mas é a ti que eu desejo
é o teu desejo que quero abraçar
esse desejo que se mata no desejo
de desejar

… nas horas incógnitas
em que passas por mim
sem te revelares.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

ALGURES NA COSTA ALGARVIA

Foto de meu Nokia

O compromisso acordou o sono bem mais cedo que tem sido normal. A rotina diária foi convertida numa sucessão de preparações contra os ponteiros dos relógios para não desiludir os horários combinados. As sandes, a fruta, os iogurtes, o pequeno-almoço, o besuntar dos corpos em protector solar, o preparar das roupas de substituição, as braçadeiras, as tolhas, os objectos de brincadeira atropelavam-se num tempo que corria mais veloz do que era desejado. Um começo de manhã que mais parecia aqueles que em breve reporão as rotinas dum novo ano lectivo e de trabalho.

Poucos minutos depois do que fora combinado a chegada. A travessia da ria em direcção ao areal que se descobre por detrás das dunas. Uma área imensa em que a questão colocada é a mesma: ‘onde colocar as toalhas?’; não por falta de espaço, mas sim pela vasta possibilidade de escolha.

A maré preparava-se para vazar. A transparência e a temperatura seduziam a vontade do grupo onde as crianças arrastavam os adultos e estes desafiavam os mais pequenos. Era distante o local onde se ‘perdia o pé’. O sol foi aquecendo e o areal ficando mais povoado. Enquanto a maré descia, na areia que o mar abandonava, as conquilhas espreitavam fora da areia convidando a transferência para um recipiente que as levasse para fora do habitat natural. Dezasseis mãos pareciam não ser suficientes para recolher todas as que se mostravam fora da areia.

Para as crianças, em conjunto, as possibilidades de brincadeira multiplicam-se, inventam-se, aproveitam-se, repartem-se. Na sombra dos chapéus conversam os adultos. E quando as memórias se começam a desembrulhar, o passado surge-nos na frente do olhar presente. E cada um dá uma dica que ajuda a capacidade de lembrar a prolongar-se até à hora da partida.

A ria volta-se a atravessar no regresso. No adro da igreja as mesas disponíveis já rareiam. Os petiscos quase não se escolhem. Pedem-se na sua generalidade. O pão algarvio, o queijo amanteigado, as ostras, o chouriço assado, as amêijoas, os camarões, voam de mão em mão saboreando as bocas, deliciando cada momento que se preenche em conversas continuadas. Instantes de partilha molhados pelo vinho que cada boca leva a escorrer pelas gargantas.

Num cruzamento ocasional, um local revela pormenores da história daquele povoado de meia dúzia de habitações. Identificam-se os termos algarvios com os do Baixo Alentejo. Só o serviço o leva e põe termo a esta pequena lição em breves instantes de conversa. Um anúncio duma casa para venda provoca a liberdade do sonho. As ideias, simples razão de divagação, estilhaçam em inúmeras possibilidades de futuro, de utopias, de realidades a não escrever.

Só o cansaço nos arrasta para as viaturas com a promessa de no próximo ano repetir o dia, mas não sem que antes se sinta a necessidade de aproveitar, em Lisboa, o prazer desta partilha, de oferecer o tempo de cada um para preencher os minutos do outro. E ao regressar ao local de poiso periódico o cansaço vem de mãos dadas com a felicidade de um dia intenso, preenchido, completo. Daqueles dias que nos fazem pensar que seria preciso mais um extra para descanso desta corrida que preenche de ar fresco a alma e escreve novas memórias para guardar no baú, de onde, daqui a tempos serão retiradas com outras que a amizade ajudou a guardar.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

PARTÍCULAS DE VIDA

Foto de Larz

Revolvo bem fundo
o areal
para assegurar todas as fases
do tempo;
ao abrir a mão
desprende-se uma infinidade de dias,
inumeráveis memórias,
dias que se apagaram
outros que fui incapaz de fazer meus,
memórias demasiado frágeis
outras que fui incapaz de agarrar,
dias perdidos,
memórias sem regresso.
E na mão
presos na pele
permanecem grãos contáveis
de dias que preservaram vida
de memórias que mantiveram chama
de instantes
expectantes
que a cegueira levante
e seja capaz de os tornar autênticos.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O SOLISTA

Imagem recolhida na net


O Solista é um livro sobre paixões. Sobre os impulsos que nos guiam sem que questionemos ou perspectivemos o depois. Sobre as forças que têm vida, que precisam ser alimentadas, que precisam de ser acreditadas.

Damos-lhe a mão às primeiras páginas e, ainda, antes que confiemos, já ele nos puxou para o universo das doenças mentais. Ainda sem segurança no caminhar tropeçamos nos conflitos dos que têm diagnosticados desequilíbrios psíquicos, mas que se revelam não ser exclusivos deles. Também os que se decidiram pelo seu apoio duvidam enquanto outras dúvidas nublam o caminho da certeza.

Enquanto o prazer nos leva a querer saber mais, deparamo-nos com os raciocínios planeados, estruturados dos que, supostamente, têm uma mente sã, serem desconstruídos pela argumentação, porventura, obsessiva mas reconhecidamente racional do que é clinicamente, considerado insano.

Steve Lopez mostra-nos o poder de acreditar e a forma como aquilo em que se acredita nos abre portas para caminhos por desvendar, ou que simplesmente precisam de ser iluminados. Em O Solista é a música esse elo de crença. Mas não exclusivo, mas não limitado. A capacidade de crer depende do ser humano e este é obrigado a confiar para viver, para deixar e fazer viver. Na tolerância sobrevive-se, na crença vive-se.

O Solista é um livro impregnado de sensibilidade, a que não é possível fugir sem emoção. Algumas vezes tornada comoção.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

OLHA PARA MIM


Olha para mim
e lê-me as palavras
que ainda não escrevi
Olha para mim
e ouve as canções
que ainda não te revelei
Olha para mim
e antecipa o tempo
que desenho para ti

Olha para mim
e mostra-me
que a montanha não é alta
se quisermos chegar ao castelo
que a noite não é escura
se quisermos fazer nossa a madrugada
que o mar não é profundo
se viver nele o nosso segredo

Olha para mim
e não me roubes o teu olhar
pois é nele que eu me sei em ti
pois é nele que eu sei ter a âncora
onde me fundear.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

JANELAS ABERTAS

Foto de Andrew Lin

Quando naquele dia, inesperadamente, se encontraram alguns anos tinham passado desde a última vez em que se tinham visto. Quando, terminado aquele jantar, em grupo decidiram ir a um bar, nenhum deles imaginara o que a noite lhes proporcionaria.

Conheciam-se há, aproximadamente, vinte e cinco anos, quando ele era responsável por um grupo de teatro e, um dia, ela se juntou a esse grupo. Não seria fácil, para qualquer deles, hoje, explicar que tipo de relação pessoal os ligara. Os contactos restringiam-se aos trabalhos do grupo teatral, mas ambos tinham sido convidados dos casamentos de ambos. Primeiro o dele, depois o dela. Quando o primeiro filho dele nasceu, ela foi das primeiras visitas.

No ano em que ele decidiu abandonar o grupo, ela também se afastou pois a carreira profissional exigia-lhe mais entrega e sobretudo porque a sua primeira filha tornara-se um projecto real de vida. Cruzavam-se, ainda que raramente, na rua, num café, num supermercado, por força de viverem na mesma zona. Até que ela mudou de residência. Se a memória de ambos quisesse percorrer o passado, a única vez que se tinham encontrado depois, fora num concerto a que, casualmente, as duas famílias haviam ido.

No grupo que integravam, ali naquele bar, outros mais eram conhecimentos comuns. Terá o destino escolhido que se sentassem juntos no canto dos bancos que serviam de apoio à mesa escolhida. O ambiente era calmo e as múltiplas conversas eram possíveis.

Mesmo que esporadicamente cruzados, os assuntos generalizavam-se entre as palavras do grupo, especialmente em temas como as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias e a facilidade com que se transportavam num mesmo equipamento fotografias, músicas, vídeos, jogos… foi então que ele lhe confessou a sua inaptidão para organizar esse tipo de ficheiros, o que, por vezes, se revelava um verdadeiro caos sempre que desejava encontrar algum que ficara perdido na sua desordem.

Quando ela lhe respondeu "a mim, era sempre o Bruno que me ajudava a fazê-lo...", ele nem se apercebeu do valor que o tempo do verbo utilizado revelava.

Com o seu olhar fixo no negro do dela, os seus pensamentos fugiram-lhe para trás, ao encontro dos tempos em que teria agido com alguma parcialidade ao elegê-la, em determinadas encenações, para representações específicas, pelo prazer de lhe ouvir a voz, para se deslumbrar com as suas movimentações em cena.

Esforçava-se, com dificuldade, por ouvi-la e dar-lhe atenção quando ela lhe tocou na mão e dois dos seus dedos se abraçaram, instintivamente, ao seu indicador. Os seus olhares estavam magnetizados. Ele totalmente perdido na conversa só de tal se apercebeu quando ela retirou a sua mão e lhe repetiu a mesma pergunta. Enquanto tentava que os dedos não perdessem o contacto com os dela, a voz feminina fê-lo despertar: "Deixa lá! Mas diz-me como estão a Sara e os miúdos? Há muito tempo que não falo com ela."

"Os miúdos estão bem! Já não são miúdos! Nós... separámo-nos.", respondeu-lhe.

"Há muito tempo?!?! Não sabia de nada... Lamento... eu e o Bruno também nos separámos há quase um ano atrás..."

Inesperadamente, o futuro parecia ter-lhes aberto janelas.

domingo, 23 de agosto de 2009

GOTAS DUM ABRAÇO

Foto de Tracy Martin


Encostaste-te em mim
como se eu fosse a muralha
que te descansa
que te segura.
Coloquei meus braços
em volta da tua cintura
como o mar
que abraça uma ilha.
Pousaste tuas mãos
nos meus braços
como o pôr-do-sol
que serena o entardecer.
Fechaste os olhos
e repousaste tua cabeça
no meu ombro
como quem se entrega na areia
para deixar penetrar o sol.
Passei meu queixo
pela pele de teu pescoço
e criaste espaço
como as espigas que se apartam
para deixar passar o vento.
Demorei meus lábios em ti
e encolheste-te em mim
como se não fossem um sonho
estas palavras
que lacrimejam como gotas
escorrendo no vidro do teu olhar.

sábado, 22 de agosto de 2009

AS MURALHAS ANTIGAS

Foto da minha Canon



Alertado pela extensão e duração do percurso decidi iniciá-lo cedo para evitar que o calor começasse a incomodar. Um pouco antes das nove horas subo os primeiros degraus sobre a Porta de Pile e assim começo cerca de 2Km de caminhada em volta do centro histórico de Dubrovnik.

Intactas as muralhas antigas são o ícone vivo de Dubrovnik. Traduzem aquele elemento inconfundível que caracteriza a sua fisionomia de cidade histórica e a identifica mundialmente. É uma construção complexa, considerada como das mais belas e mais fortes fortificações do sul europeu ligando fortalezas, bastiões, guaridas e torres.

O percurso começa-se em direcção ao Adriático e ao Forte Bokar que foi um dos pontos para defender o acesso continental, pelo lado ocidental, à cidade. É, na actualidade, local privilegiado para observar a fortaleza Lovrijenac.

Com o Adriático a banhar o sopé da muralha do lado direito, observo, agora de cima, o bairro de Pustijerna. Sensivelmente a meio percurso passo pelo Buža, o tal bar implantado nas escarpas exteriores da colina que suporta a muralha. Por agora ainda vazio, mais tarde será seguramente local de prazer para os que decidam sentar-se na sua esplanada a contemplar a ilha de Lokrum que avisto ao fundo.

A face mais sinuosa do percurso é a que começa no Forte de S. João, responsável ao longo de séculos pela defesa do Porto. Das muralhas tenho oportunidade de apreciar de uma nova forma este porto de onde saem diariamente, a cada hora, os mini-cruzeiros turísticos. São as reentrâncias do porto que obrigam também as muralhas a recortarem-se. Chego ao Forte Revelin, em mais um vértice do perímetro, e à Porta de Ploče que franqueia o acesso à cidade pelo oriente.

Falta-me o último quarto do percurso. Esta etapa é a ideal para olhar os telhados de Dubrovnik. São distintos os que resistiram ao cerco e ataques sérvios no inicio dos anos noventa, e os que foram entretanto reconstruídos com telhas oriundas de França e Eslovénia. É deste lado que são obtidas as tão famosas fotografias que sobrevoam esta infinidade de telhados pintados da cor do barro. Procuro uma sombra para retemperar forças. O calor já se faz sentir.

Chego finalmente ao ponto mais proeminente das muralhas: a Torre Minčeta. O local onde se atinge a maior altitude de todo o percurso. Sugerido como um ponto único para apreciar o pôr-de-sol no Adriático, limito-me à oportunidade de deitar uma derradeira olhada sobre Dubrovnik, como se estivesse mais perto do céu para o fazer. Caminho de regresso à Porta de Pile, para descer das muralhas e tomar o corredor da cidade. A Stradun já fervilha, apesar de pouco passar das dez horas da manhã.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

AS PALAVRAS NÃO SABEM DIZER

Foto de Jennifer S

Tenho esventrados na pele
espaços onde as carícias rareiam,
poços de vazio
por onde a saudade se escoa,
sinto a ausência dos dedos
nos rasgões da vontade insaciada.
Gela o frio do tecido
no lugar por preencher.

Dos lábios soltam-se em gritos
os beijos sem fonte onde mergulhar,
sobram os leitos
dum rio sem ter por onde navegar,
sinto a humidade diáfana
na boca seca da sede calada.
Gela o sabor tragado
no lagar de memórias por inventar.

Na invisibilidade dum olhar por abrir
estendem-se paisagens de sedução,
perde-se no deserto
a procura incessante de partilha,
sinto o anonimato que me converte
apenas num ser a mais na multidão.
Gela a visão colorida
dos muitos rostos que não se cruzam.

E as palavras não sabem dizer
o que os sentimentos querem falar,
falta-lhes expressão
onde sobra vida.
Os dias sem destino tornam-se destinatários
da sublimação do querer.
Gela a poesia do gesto
na inexistência duma folha onde o escrever.


quinta-feira, 20 de agosto de 2009

STRADUN

Foto da minha Canon


A Stradun é o corredor privilegiado do centro histórico de Dubrovnik. É a ligação mais directa das duas principais entradas na cidade entre muralhas, pois une, em linha recta, a entrada ocidental na Porta de Pile e a oriental, a partir do porto antigo. A arquitectura actual data do período pós-sismo de 1667. Dos dois flancos da avenida foram construídos prédios com a mesma altura e cujas janelas têm todas as portadas pintadas no mesmo verde, para preservar uma uniformidade quase impossível nas principais vias de qualquer outra cidade europeia.

Desta rua principal nascem alguns dos mais importantes edifícios monumentos da cidade, a par de muitas vielas que lhe são perpendiculares e onde a vida de Dubrovnik monumental se prolonga para além da artéria principal. Ao longo da Stradun sucedem-se estabelecimentos comercias que prioritariamente vendem artigos característicos da cidade, da região e do mar que as banha. São diversas as esplanadas espalhadas pela avenida o que concede ao transeunte a sensação de estar numa passarela duma passagem de modelos, uma vez que as cadeiras das esplanadas mencionadas se esgotam com os olhares dos que permanecem largos minutos unicamente a apreciar os que passeiam pela Stradun. O chão em mármore, polido pelo tempo, parece ter sido propositadamente encerado para receber os milhares de turistas que diariamente o pisam.

Durante o dia, a Stradum tem o movimento de quem a percorre para chegar aos pontos turísticos a visitar como o Palácio Sponza, a Grande Fonte de Onofre, a igreja de S. Braz, ou a torre do Relógio, entre outros. À noite veste-se de charme, a iluminação assume um cariz romântico, e ainda que nem todos se olhem, os caminhantes ouvem-se, adivinham-se, sentem-se… e a Stradun torna-se o palco principal para este acto de sedução entre a cidade e os seus visitantes.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

BILHETES

Foto recolhida aqui


Regressava a casa depois de todas as andanças dos últimos dias. Ao colocar as chaves na porta invadia-a a ansiedade de perceber onde estariam os malfadados bilhetes desaparecidos. Mais do que a preocupação de reaver o valor dos mesmos, inquietava-a não conseguir lembrar-se onde os havia colocado. Nos possíveis locais onde os poderia ter deixado, não tinham sido encontrados. Irradiava-lhe uma ténue esperança de que a busca não tivesse sido devidamente realizada.

Quando entrou no quarto, ainda que não fosse evidente grande desarrumação, era-lhe perceptível que todos os seus montinhos de objectos tinham sido remexidos. Começou pela secretária do portátil e minuciosamente observou cada empilhamento de folhas, de fotografias, de papéis… em cima do sofá os livros, os sacos de plástico com os programas, os desdobráveis… na mesinha de cabeceira os livros… nas gavetas… nas carteiras… atrás das molduras… onde estariam os bilhetes?

Tentou refazer o trajecto daquele dia, a chegada a casa. Todos os actos. Todos os passos. Cada instante. Cada gesto. Mas não conseguia. Aquilo que já fora certeza parecia agora um enorme buraco branco. Vazio.

Sentia-se perdida, como se a casa girasse à sua volta provocando-lhe um crescente entontecimento. Resolveu desfazer a bagagem. Abriu a mochila e começou a separar o que vinha no interior, deixando no quarto o que não tinha de ir para a máquina de lavar. Dirigiu-se à cozinha e começou a organizar a primeira carga de roupa.

Antes de voltar ao quarto retirou o entrecosto que tinha congelado. Abriu a porta de cima da unidade frigorífica e tirou o saco com a carne. Levou-o até ao lava-loiça para passar a carne por água e ao separá-la do plástico detectou uma cartolina vermelha pegada ao saco. Era o invólucro com os bilhetes. Lembrou-se então que os levava na mão quando ao regressar ao carro com as compras do talho, para abrir a porta, os tinha atirado para dentro saco. ‘O peg[C]ado da carne!’, concluiu.


Antecedente
I II

terça-feira, 18 de agosto de 2009

MARCAS DO TEMPO

Todos os dias o tempo passa por nós acumulando anos duma vida.

Mas, periodicamente, há um dia em que a vida nos oferece mais um ano.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O CHEIRO DA SOMBRA DAS FLORES

Foto recolhida aqui


O primeiro contacto foi aqui. E li. E a sensação foi tão… que corri. E na primeira livraria com que me cruzei, um livro para ler mais, procurei. Mas não encontrei. E em cada livraria que entrava, eu procurava, mas não encontrava. E depois noutra, e mais noutra e até noutro, quando fui ao Porto. E nunca o descobri e mais não li, até que de novo o vi aqui. E foi então que pedi uma mão para chegar à solução. Foi aqui que a pedi e fui remetido para ali. Por fim, depois de muito calcorrear já tenho nas mãos O cheiro da sombra das flores.

Comecei-o a ler e a soçobrar à magnitude da escrita. Num arrepio constante fui passando de poema para poema. E a pele não serenava. E eu fui ficando saborosamente estarrecido. E tentava apanhar cada pormenor como se me atirasse para o chão e, de gatas, procurasse cada migalha caída, impossível de desperdiçar. E aqui e ali um sorriso implantava-se-me nos lábios. E outro rasgava-me o peito, enchendo-me de alegria e de deslumbramento o interior. Que prazer. E esmigalhando-me fui ficando mudo, reduzindo-me cada vez mais à minha insignificância.

E sinto-me incapaz de o descrever. Por isso permito-me recorrer a excertos do Prefácio, nas palavras de Joaquim Pessoa, as quais considero serem inequivocamente assertivas. "…transformando com invulgar talento as diversas vozes que há na sua voz, de modo a oferecer-nos um canto em que a dúvida, a interrogação do outro, a confrontação do individuo com a realidade é, às vezes, dolorosa, e muitas vezes, incómoda. A sua repetição rítmica das palavras, das ideias, dos conceitos é uma arma de confronto, de arremesso contra uma realidade parada ou contra o indivíduo parado num palco que se move à sua volta."

Para mim, João Negreiros brinca com as palavras descobrindo-lhes rolamentos, cordas, elásticos, esticadores que se me afiguravam inexistentes até lhos ler em exemplos despejados de enxurrada. João Negreiros brinca com o leitor porque o leitor é cada um de nós, de vocês, é o homem, a mulher, a criança, o velho. É ele próprio. E brinca com a vida provocando-a, na expectativa de se ver confrontado por ela para, posteriormente sair, ele próprio da posição de defesa e reinvestir. Nunca se sentando. Nunca tolerando. Nunca se calando. É-me impossível eleger um excerto ou um poema para identificar as emoções que pretendi aqui deixar, mas consciente de estar a cometer alguma injustiça transcrevo um exemplo identificativo da singulariedade da sua escrita. Intitula-se O Colo, e é assim:

Dá-me esse abraço
p’ra não sentir este aperto
dá-me este amasso
p’ra te contar com apreço
que não consigo
que é muito
perco-me amei-o

nas contas do colar a ti

E ao chegar ao fim fiquei assim, com vontade de regressar para recomeçar e voltar a ler e de novo beber cada intuição, cada emoção até me sentir um oceano que engoliu uma floresta.

domingo, 16 de agosto de 2009

WAR PHOTO LIMTED

Foto recolhida aqui


War Photo Limited é uma exposição de fotografia patente numa galeria com decoração moderna e bem apropriada para esta arte, que fica situada numa das vielas que saem da Stradun. A informação que lera e me levou a visitá-la, anunciava ser um conjunto de trabalhos sobre a guerra na ex-Juguslávia, entre 1991 e 1999. Dizia ser um trabalho imparcial que reúne a qualidade de ter sido considerada pró-Croata pelos Sérvios e pró-Sérvia pelos Croatas.

Na mesma galeria, e para além da referida exposição, podem apreciar-se outras duas sobre o mesmo tema, mas em locais geográficos díspares do planeta.

Numa primeira são diversos os fotógrafos que apresentam diferentes visões da guerra. Tanto é possível observar um residente em Sadr City procurando os restos mortais dum familiar por entre centenas de sacos de plástico contendo corpos, como imagens da guerrilha em Timor Leste, como as perseguições movidas aos emigrantes latino-americanos que ostentam o sonho de alcançar território norte-americano, ou ainda a luta das crianças para sobreviverem num País sem governo, sem regras, sem planos de assistência, como é o exemplo da Somália.

Num outro espaço estão reunidas imagens de outras guerras, de outros sofreres, de outras mágoas… no Iraque, em Beirute, na Palestina, no Paquistão, no Afeganistão. Entre todas impressionou-me uma que não ilustra uma guerra bélica. Em Pul-e-Alam uma criança arruma uma ‘plantação’ de milhares de tijolos. Quase parece um jogo, uma obra de escultura. Mas não é! A verdade é que são tijolos que ainda têm de secar e só o peso duma criança permite que se mova sobre eles sem os danificar.

Finalmente chega-se à sala da guerra que envolveu tantos povos neste território e nações circundantes. Sérvios, Croatas, Bósnios, Albaneses, Macedónios, Kosovares… foram muitos os envolvidos. Foram muitas as vítimas. Foram muitos os provocadores. Mas ao contrário do que é anunciado, só uma leitura considero ser possível: foram os sérvios os principais instigadores de tanto massacre. Mesmo que a intenção não seja uma manifestação anti-Sérvia, é notório e evidente o peso tido pelos sérvios nas atrocidades cometidas.

Se há imagens que ferem pela dedução dos actos que se entende terem sido cometidos, como será exemplo uma sequência em que uma patrulha sérvia começa por assassinar um bósnio à vista da que se depreende ser sua esposa, para em seguida a assassinar a ela e finalmente pontapear os corpos de ambos; noutras são os olhares captados que disparam sobre nós. Os dos que vêem os seus pertences serem destruídos, os dos que são obrigados a abandonarem a sua terra como se tivessem sido invasores, os de um cidadão que implora pela vida ao ser barrado numa rusga, ou os de uma criança que olha sem nada perceber.

São impressionantes estas imagens. São devastadoras. São alerta a tantos, tantos entre os quais me incluo, que temos acesso à informação sobre as guerras que vão minando o nosso planeta, mas nunca lhes tenhamos atribuído os reais e devidos valor e importância. Um alerta a todos nós os que a cada dia temos uma cama onde nos deitarmos, onde deitar os nossos filhos, uma cadeira onde nos sentarmos, um porto seguro onde atracar. A todos nós que nunca nos vimos confrontados por um esquadrão que nos acusa de termos ocupado a terra que é nossa.

Ao visitar a War Photo Limited confirmei que uma imagem vale mais do que muitas, muitas palavras.

sábado, 15 de agosto de 2009

PALÁCIO SPONZA

Foto da minha Canon


O Palácio Sponza será dos poucos edifícios que passou incólume ao sismo que destruiu Dubrovnik, em 1667. Durante a vigência da República funcionou predominantemente como alfândega. Foi, contudo e ainda, Casa da Moeda e Banco do Estado reunindo, pois, muitas áreas fulcrais para uma nação que vivia essencialmente do comércio.

No arco existente no átrio, e onde existia uma balança, está inscrito em latim um princípio que norteava os nativos de Ragusa: ‘As nossas tarefas não permitem enganar nem ser enganado. Quando pesamos a mercadoria é o próprio Deus que nos pesa.’

Actualmente, o Palácio Sponza alberga o que de mais importante existe sobre o arquivo histórico de Dubrovnik. A par de livros de grandes dimensões onde eram anotados os movimentos de transacção comercial do Estado, pode-se apreciar o Certificado de Criação da República de Ragusa, com data de 1358, bem como o decreto, assinado pelo General francês Marmont, que determina a abolição da República de Dubrovnik, em 31 de Janeiro de 1808.

No átrio está patente uma exposição de fotografia que nos mostra muitos dos mais notáveis momentos do Festival Internacional de Dubrovnik, o qual entre Julho e Agosto reúne concertos, recitais, espectáculos de teatro e de dança. Em algumas destas imagens é possível perceber como muitos dos espaços por onde o turista circula foram ou são adaptados para os eventos do festival. O próprio átrio do Palácio Sponza é prova disso.

Deixo, porém e intencionalmente, para o fim aquilo que testemunhei logo à entrada mas que acaba por ser o que mais interfere com a sensibilidade do visitante. Ao entrar, imediatamente à esquerda, uma pequena sala denominada ‘Memorial’ reúne imagens de muitas das vítimas do cerco sérvio de 1991. A par desses rostos humanos que pereceram, existem imagens de alguns pontos de relevo do hoje, como o Hotel Hilton ou a Stradun, em chamas. Entre essas fotos há uma que é um simples clarão de fogo desfocado. Foi tirada por um habitante da Dubrovnik no momento de ser mortalmente alvejado. A sua última foto. É impossível, ao visitante, passar incólume ao sentimento de revolta por barbáries como as que foram cometidas há menos de duas décadas atrás. Fica para a memória. Na superfície da pele de quem visita o Palácio Sponza, em Dubrovnik.


sexta-feira, 14 de agosto de 2009

DUBROVNIK

Foto da minha Canon

Ragusa e Libertas são dois termos que estão profundamente ligados a Dubrovnik. Ragusa era o nome da localidade que deu origem à República de Dubrovnik, enquanto Libertas [liberdade] tem sido dos valores mais preservados pelos cidadãos de Dubrovnik. Ainda que tendo estado sob o domínio de Veneza, a República de Dubrovnik lutou e defendeu a sua independência ao longo de muitos séculos. Excepção terá sido quando em 1806, ousou depender do apoio da França, para levantar o cerco imposto pela Rússia e Montenegro, e acabou por ver decretada a sua dissolução por ordem do general napoleónico Marmont.

Esta mesma vontade, a importância deste valor, foi, uma vez mais demonstrado pelos que caíram vitimas dos ataques perpetrados pelo exército sérvio que em 1991 cercou a cidade e a votou ao isolamento durante um período de tempo. Terá sido essa tenacidade que fez a cidade reerguer-se, reorganizar-se e tomar, de novo, o seu lugar no país croata com o orgulho de ser a principal razão de atracção de turistas.

Ao final de três dias afiguram-se-me duas faces distintas de Dubrovnik. À luz do sol é a cidade histórica, dos edifícios, das pedras por onde passou a história, das paisagens que marcam o imaginário de quem a ansiou visitar, que sobressai. É em busca destas referências que os turistas, muitos espanhóis, bastantes italianos, franceses e obviamente imensos croatas, percorrem todas as ruas, praças, todos os monumentos, becos, em busca dum testemunho, dum ângulo inovador, de experimentar ao vivo a beleza desta cidade. Quando a noite desce, a cidade veste-se de bom gosto, de ‘glamour’ e exterioriza todo o seu charme. As ruas enchem-se de caminhantes em busca dum lugar numa das esplanadas que preenchem todos os espaços, nas ruas, vielas e praças. As luzes da cidade tomam uma intensidade que parece querer traduzir um ambiente de luz de velas. Os transeuntes nem precisam de vestir roupa de gala, pois é a própria cidade que incute o bom gosto, no qual os visitantes são meros peões que complementam, na perfeição, o ambiente.

Foi Lord Byron que a denominou como ‘A Pérola do Adriático’. Se numa mão juntarmos a sua beleza, a sua história, a sua conservação, a sua ambiência, a sua temperatura e a simpatia das suas gentes, farão sentido as palavras de George Bernard Show ao afirmar que ‘aquele que procura o paraíso na Terra, deverá fazê-lo em Dubrovnik’.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

CATEDRAL DE DUBROVNIK

Foto da minha Canon

A Catedral de Dubrovnik é consagrada à Ascensão de Nossa Senhora. O terramoto de 1667 destruiu a catedral românica dos séculos XII a XIV, pelo que para sua substituição foi construída a actual igreja cuja edificação foi concluída no início do século XVIII. De acordo com dados históricos, a anterior catedral era uma basílica sumptuosa com cúpula e adornada com inúmeras esculturas. Reza a tradição que fora construída com dinheiro dum donativo do rei inglês Ricardo Coração de Leão, que se tendo salvo dum naufrágio, quando regressava da Terceira Cruzada, terá dado à costa na ilha de Lokrum. Em 1981, a actual catedral foi objecto de obras de reconstrução durante as quais foram descobertos vestígios que revelaram a existência ainda mais antiga duma outra igreja, cujas características arquitectónicas apontam para o séc. VII.

Stjepan Gradić, um dos mais conceituados intelectuais do final do séc. XVII nascidos em Dubrovnik, teve predominante acção nos esforços para a construção do actual monumento. À data desempenhava o cargo de Reitor da Biblioteca do Vaticano e era o representante da República de Dubrovnik junto da Santa Sé. Graças às suas relações e amizades, Gradić conseguiu renovar a sua cidade natal extensamente destruída pelo sismo.

A Catedral de Dubrovnik é uma igreja despojada. Imperam as paredes brancas num estilo claramente barroco que divide o espaço em três naves. O tesouro da Catedral terá sido um dos mais ricos das costas do Mar Adriático, mas foi extremamente destruído com o terramoto de 1667. Dos mais importantes objectos ainda existentes, destaca-se um relicário com o crânio de S. Brás santo padroeiro da cidade, bem como as suas duas mãos e uma das pernas. Num dia de extremo calor, a Catedral serve para momentos de repouso e meditação enquanto o corpo retoma energias para retornar à descoberta da cidade.


Informações históricas recolhidas no guia turístico Dubrovnik, ciudad de cultura y arte, de Antun Travirka, com tradução para castelhano de Karlo Budor, numa edição Fórum Zadar, em 2008

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

PUSTIJERNA

Foto da minha Canon

Caracterizam-na como uma zona de construções degradadas. Por detrás da catedral, a pouquíssimos metros das praças e ruas pejadas de esplanadas e turistas, entro no bairro de Pustijerna. Uma zona habitacional, bem pegada com a muralha e sem movimentação turística.

Caminho seguindo o que me parece a via principal única. Dela saem inúmeras vielas, escadas. À frente nasce um pátio, depois um beco. São poucos os visitantes por aqui. Junto às escadas - pintadas pelo verde das plantas e flores que ali vivem - que dão acesso a uma casa do bairro, uma reunião de gatos anuncia que dentro em pouco alguém sairá com comida. Um pouco à frente três degraus levam-me a uma porta em arco. Subo-os, passo-a e chego a um pátio. Duas mulheres sentadas num banco de pedra conversam em croata que não entendo. Num outro canto três rapazes vivem numa troca de palavras, também imperceptível, mas bem acesa. As casas têm as janelas abertas. É possível observar o quotidiano destas gentes.

Algures numa parede, um cartaz anuncia ‘Cold drinks. Nice view’. Sigo a indicação. Entro por uma porta com pouco mais do que a minha largura. Saio das muralhas. Deparo-me com uma esplanada, aproveitando os diversos níveis da encosta, virada para o Adriático e a ilha de Lokrum.

Deixo o olhar deslumbrar-se com mais esta revelação. Volto à porta e às ruas estreitas de Pustijerna. Desço uma longa escada. Num outro pátio, um homem pendura roupa, acabada de lavar, num estendal. Imagino o que a vida mudou. Nestas ruas, segundo referem as brochuras turísticas, o sismo de 1667 não fez grandes malefícios. Quer dizer que estas ruas já eram assim no século XVII. Por muito que queira não sei como seria a vida nessa altura, nestas ruas. Seguramente bem diferente. Em dois minutos chego ao fim das escadas, mais uma rua e estou de novo, no glamour de Dubrovnik.

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?


Foto de Philip LePage

Não tinha sido fácil. Fernando escudara-se no sigilo deontológico para recusar o pedido que lhe fizera. Recusara-se a accionar uma pesquisa que lhe poderia provocar graves problemas disciplinares. Mas… um dia deu-lhe um número de telefone.

‘O que é isto?’, perguntou-lhe.

‘Não sei.’

‘Então porque mo dás a mim?’

‘Acho que andavas à procura de qualquer coisa’

‘Dum número de telefone? Para que quero eu isto?’

‘Não sei. Descobre.’

E surpreendeu-se com um número de telefone sem saber o que fazer com ele. Até que se decidiu marcá-lo.

‘Instituto Camões. Bom-dia.’

‘Bom-dia’, respondeu em tom de espanto.

‘Com quem deseja falar?’

‘Peço desculpa. Foi engano…’

Recuperou do inesperado e voltou a marcar o mesmo número.

‘Instituto Camões. Bom-dia.’

‘Bom-dia. Posso falar com Miguel Albergaria?’

‘O Dr. Miguel Albergaria não está. Quem deseja falar com ele?’

‘É… uma amiga. Saber-me-á dizer quando posso falar com ele?’

‘O Dr. Miguel Albergaria partiu em missão para Moçambique. Não existe qualquer dado que possa confirmar o seu regresso.’

‘… !?!?...’
‘Sim? Por favor…’

‘Peço desculpa. Não sabia… E como o poderei contactar?’

‘Lamento, mas não tenho como a auxiliar. Necessita de mais alguma informação?’

‘Não. obrigada…’

terça-feira, 11 de agosto de 2009

PRIMEIRAS BRAÇADAS NO ADRIÁTICO

Foto da minha Canon


A praia, chamam eles a uma pequena área de pedregulhos que dá acesso ao mar. Um declarado desafio ao equilíbrio e à sensibilidade dos pés habituados a caminhar sobre areia naquilo a que me habituei a chamar, realmente, uma praia.

Ultrapassado o dito exercício convém mergulhar antes de ter a água pelo joelho para evitar prolongar o tormento de continuar a peregrinação sobre terrenos impróprios. E aí… aí esquece-se as linhas anteriores. A temperatura acaricia o corpo. A transparência permite ver tudo que está sob a superfície. E as braçadas obrigam-se no prazer de desfrutar este Mar Adriático extremamente salgado.

De braçada em braçada cresce a dúvida sobre contemplar o que há debaixo de água, ou perdermo-nos na paisagem circundante. Os mais diversos tipos de embarcações passam perto, em velocidade totalmente pacífica de quem quer apreciar a costa, mais do que demonstrar as respectivas potencialidades. De centímetros em centímetros do horizonte visual, as ilhas mostram-se. Uma totalmente desabitada, outra com uma ou outra habitação, outra com marcas do que parece ser uma casa desactivada. Mais ao fundo uma colina íngreme desce até ao mar, em tons de verde dos arvoredos e cinza das rochas. Atravessada por uma estrada, é possível contar as casas existentes de tão poucas serem, nesta paisagem/mulher com uma virgindade ainda bem estampada.

Ao sair da água repete-se o desafio. Talvez mais difícil agora, porque é preciso subir. Exercer maior pressão sobre as pedras roladas. Desconhecimento de noviço. Perto de mim, uma família de italianos está devidamente equipada com calçado apropriado. Por isso caminham decididos para o mergulho, enquanto eu me imagino na figura que farei quando quiser, daqui a pouco, me deliciar com as próximas braçadas no Mar Adriático.

BILHETES

Foto recolhida aqui

O átrio do prédio tinha uma luz amarela meio adormecida; um ambiente nu preservava apenas o essencial. Respirava-se alguma tensão na subida até ao segundo andar. Entraram, ela tomou a dianteira. A casa estendia-se num corredor gasto pela vida, pelo tempo. Penetrava pelos olhos, em acção de descoberta, algum despojamento, alguma austeridade, provocados talvez por limitações orçamentais ou pela ausência de motivação em renovar. Os dois homens seguiram-na em direcção à divisão no fundo. A simplicidade marcava as tonalidades da habitação. Uma ordenação própria alinhava os diferentes objectos que povoavam o quarto. A organização predominava sobre a arrumação.

Com alguma apreensão, ela iniciou a busca. Livros, fotografias, álbuns, programas de concertos, envelopes, mais fotografias, mais cadernos de apontamentos e mais livros. Carteiras, mais livros ainda, sacos, fotografias, molduras, facturas em cobrança, gavetas, envelopes, bolsas, computador, bolsas, separadores, envelopes… e a angústia de nada encontrar. Os sorrisos sucediam-se não disfarçando alguma tensão pelo acto que estava a ser assumido.

Perdida perante a infrutuosa busca, abraçada por alguma ansiedade, marcou um número e aguardou resposta. O sorriso nervoso tomou-lhe conta do rosto quando disse: ‘Não consigo descobrir nada!!!’ A sequência da conversa deduzia-se pelas suas respostas: ‘Já vi!’, ‘Nada’, ‘Também não’, ‘Descansa, tudo em ordem’, ‘Não há mais onde procurar’.

Todos os espaços foram verificados três, quatro vezes. Cada pormenor esmiuçadamente investigado. Passaram à sala, cozinha e até casa de banho foram conferidas, mas sem qualquer resultado. Não havia como encontrar o procurado. Desistir e adiar para o dia seguinte a resolução era a única forma que se afigurava humanamente possível.

Apagaram todas as luzes, fecharam a porta, desceram no elevador… amanhã se veria como ultrapassar a contrariedade.



Antecedente
I

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A CHEGADA

Foto da minha Canon


Dezanove quilómetros separam o aeroporto do centro da cidade. Significativa parte do percurso é feita junto a uma costa que se recorta sucessivamente, recolhendo-se aqui e ali numa baía. A namorá-la multiplicam-se as pequenas ilhas verdes. Ao longo da estrada isolam-se casas que preservam a traça original num perfeito estado de conservação exterior. Bem espalhadas marcando, cada uma, o respectivo território. A ideia construída a partir das imagens vistas e ouvidas, não se desilude. Antes pelo contrário.

Por fim avista-se a muralha de Dubrovnik que passou incólume, não sei se milagrosa ou intencionalmente, aos bombardeamentos da Guerra Civil. E nesse instante há algo de mágico a passar do olhar para o sentir. É a realização dum ver, até então, simplesmente projectado. E que hoje se vive. É real. Ao entrar na cidade percebe-se o turismo e como ela está preparada para o receber. Contudo nada na arquitectura, que presumo original, é alterado, nada foi construído em contraste com o pré-existente. Como tal, o turismo quase se torna uma característica da cidade.

Conforme se caminha para fora do centro, em direcção à área onde proliferam os hotéis, resorts e afins, oferecem-se-nos novos recortes na costa, baías que entram por ela dentro como se o Adriático tentasse entrar mais longe, pelo interior do território terrestre. O bom gosto continua a impor-se nesta zona mais recente, onde a arquitectura se desenha em linhas despojadas. Os edifícios espalham-se em largura e comprimento. Os cinco andares são os arranha-céus.

A noite chega mais cedo, mas ainda antes, há oportunidade para ver o sol descer sobre o mar e esconder-se atrás das ilhas. Até amanhã.

A PRESENÇA NA AUSÊNCIA

Foto de Matjaz

Ausento-me da virtualidade
desta presença
e quando o vosso voo
realizarem por estas linhas,
outros céus
a minha realidade cruzará.

Parto à descoberta
de olhares desconhecidos
que irei registar no meu,
mergulhos em novos mares
pisar novas areais
conquistar novas muralhas
sentir na pele outro sol
contemplar novos sorrisos.

No regresso
farei de todas as capturas
renovados momentos
de partilha.

domingo, 9 de agosto de 2009

EM CÂMARA LENTA [V]

Foto de Lukas Wozny

Março ia avançado quando naquele dia a frescura da manhã se mascarou de tristeza. A melancolia pegou num vestido de carícias e provou-o. Puxou o fecho de ternura para se compor e, na bolsa, guardou a história de sentimentos. Mesmo distante sentia-lhe aquele fiozinho frio cortar-lhe o peito e, ainda que não houvesse lágrimas, sabia que o dia dela chorava. Tentava segurar-lhe a respiração. Sopros de oxigénio em sinais de presença como suspiros de murmúrios dizendo: "estou aqui!"

Era-lhe impossível perceber a reacção dela. Não a via, não a ouvia... só lhe sentia as palavras. E estas chegavam como escolhidas por entre as mais perfeitas alguma vez escritas. As únicas, uma vez depuradas todas as que poderiam ser lidas. Terá, já só mais tarde, percebido que as palavras que ela lhe deu a ler, naquele dia, poderão ter sido somente lágrimas que ela verteu e teve necessidade de lhe pedir que as guardasse. Quando as recebeu não as entendeu assim...

"Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim."

Conforme a noite avançava, a hora da partida aproximava-se. Ele sentia como se houvesse um laço invisível que os ligava, que lhes permitia não se afastarem. Na necessidade de ir, pressentia-lhe o desejo de que a distância se flexibilizasse, distendendo sem quebrar aquele fio de nada, indefinível, indecifrável, mas que sentiam.

E mesmo, mesmo antes de partir, as palavras de Pessoa abriram caminho para aquela revelação. E o mundo sorriu. E aquele voto que entendeu como de confiança - quiçá um grito incapaz de ser contido - desenharam-lhe um sorriso no mundo, um perfume pulverizando o universo. Aquele instante que marca o filme, independentemente de quem sejam os intérpretes. Para viver bem em câmara lenta, mesmo que em ilusão, se o realizador responder pelo nome de... sentimentos que nos provocam sorrisos interiores.