segunda-feira, 14 de setembro de 2009

TESTEMUNHAS

Foto de RamonaG


Era clara a memória que guardava de se deter na entrada da sala e ficar a contemplar o fumo que se projectava em direcção ao tecto, para lá das costas daquele imenso cadeirão onde seu avô se sentava em longas horas de ausência, viajando para fora das portadas que deixavam estender o seu campo visual primeiro pela varanda e em seguida pelo jardim. Por perto costumava ter alguns volumes roubados às prateleiras das estantes centenárias, que se encostavam àquelas paredes altas em que o branco se manchava com a passagem das épocas. Obras literárias que folheava para chamar a História. Essa História que tantas vezes o avô lhe narrava como se tivesse sido ele o argumentista das películas que relatavam o quotidiano das nações.

Hoje era ele que, sentado naquela cadeira, rebuscava esses prazeres de ser neto, de aprender embalado por uma voz a que a idade roubara poder, mas acrescentara saber. Quando se é criança, as histórias são melhores de ouvir, do que de ler. A imaginação corre mais ao ritmo dos sons. As entoações servem de puxões, outras vezes de empurrões para a construção dos cenários, a idealização das personagens, a antecipação dos finais.

Hoje, ali sentado, ele tentava concentrar-se no desenrolar do conto que há dias se sentia incapaz de escrever, de continuar. Procurava inspiração enquanto os pensamentos recuavam ao encontro da infância. Passava o olhar pelas lombadas alinhadas que tantas vezes vira seu avô pegar para folhear o seu interior. Olhava-as, sem pedir ajuda, na expectativa de que elas lhe segredassem uma pista. Muitas vezes, uma palavra era suficiente. Uma palavra era a janela que se abria e o fazia voar através de outras que lhe nasciam espontaneamente. Olhava pela janela e via-se a trepar pelo velho ulmeiro até chegar aos troncos que lhe concediam um ângulo de visão para espreitar a sala. Para se quietar e esperar que o olhar do avô o descobrisse. Que saísse do seu voo ausente e aterrasse no seu reino implantado num tronco duma árvore. Quando o olhar do avô saltava por cima das hastes, o olhava seriamente antes de começar uma sucessão de gestos que se havia tornado código secreto entre ambos, ele sentia-se empossado de almirante a quem fora dada ordem de zarpar. E ele partia em navegação pelo céu, comandando bandos de aves.

Uma inquietude do presente levava-o a ficar preso a essas memórias de infância, num cenário que pouco havia mudado. Só o tempo se tinha feito pesar nos corpos dos seres vivos. Antes era mais fácil acreditar que conseguia imaginar, criar, inventar.

Sentiu-a entrar. De pés descalços. Como se voasse rasando o soalho. Não a procurou, mas as suas meditações foram interrompidas. Percebeu que ela chegara perto do cadeirão, mas manteve-se imóvel. Limitou-se a chamar a sua percepção sensitiva para aquele momento. Ela olhava-o de cima, como a ave que paira no céu à espera da presa. Talvez aguardando a identificação da sua chegada ou apenas cumprindo o plano previamente idealizado. Trazia o cabelo preso em si mesmo. O pescoço descoberto. O punho direito cerrado.

Enquanto ele tentava mostrar-se insensível à presença dela, mas com todos os sentidos em alerta máximo, ela parecia agir com prudência, como se cada passo houvesse sido estudado para garantir que não falharia. Ganhava segurança e acreditava ir obter sucesso. A cada tic.tac do relógio de parede a tensão aumentava, ao contrário do que cada um procurava exteriorizar e convencer-se a si próprio.

Ele contava cada segundo e sentia o coração espaçar sucessivamente menos as batidas. Esforçava-se por reduzir a pressão da mão pousada no braço do cadeirão que lhe parecia estar mais ao alcance da vista dela. Sabia que ela estava em vantagem. Podia controlá-lo. Sabia-se observado mas sem ousar confrontá-la.

O sol entrava pelos vidros da porta erguendo-se no céu. Ela deslizou sobre o lado direito do cadeirão. Oferecia-lhe o perfil esquerdo. Parou, em pé, a escassos centímetros da perna direita dele. O punho direito aliviara um pouco a tensão. A mão esquerda cruzava-se para trás das costas. Olhava-o superiormente para assegurar qualquer reacção dele. Deu mais um passo na sua direcção. A mão direita dele deslizou sobre o braço do cadeirão. Tentava controlar a vibração involuntária. Saiu da superfície de pele e avançou sobre a coxa esquerda dela. Ela sentiu o coração desacelerar. Deu o passo derradeiro. Até que a sua perna tocasse a dele. Rodou cento e oitenta graus e sentou-se nele. Sob a leve túnica de seda que ela vestia, sentiu a frescura duma pele exalando o perfume do creme hidratante. Percorreu-lhe as costas. Ela anichava-se no seu peito. Chegou aos ombros. Desprendeu as alças. Sentiu-lhe a pele entumecer-se de desejo. A temperatura do corpo a querer subir. A respiração a antecipar-se.

Na direcção do tecto erguia-se uma névoa de pensamentos. Estavam abertas as páginas do livro onde ele iria roubar palavras para continuar o conto que um dia, talvez, adormeceria numa estante, duma sala, de lombada virada para a cena dum instante de fogo, do qual passaria a ser testemunha.

1 comentário:

helenabranco.poet@gmail.com disse...

Este é por direito um livro alinhado na estante, de cuja lombada exalam essências hidratantes...e lumes de paixão!...

Bom ritmo bela textura final enebriante...