domingo, 6 de dezembro de 2009

PÁGINAS DUM COMBOIO


Era grande a torrente que de todas as vezes deixava guardada. Uma vontade calada, entupida pela incerteza, pela dúvida, pelo receio da negação, por acreditar que era um sonho demasiado alto para si. Aproveitava o prazer da conversa sem se aperceber do tempo que lhe era concedido, oferecido, intencionalmente partilhado. Esquecia, a cada vez, o que o conduzia, ou tentava dar-lhe outro significado. Adaptava-se à postura formal que julgava ser a mais adequada. E a cada despedida agradecia a uma entidade superior o privilégio que tivera. Regressava a si e tentava convencer-se de que deveria estar grato, mas que o céu não lhe pertencia, que seria com os pés na terra que deveria caminhar. A ficção era matéria para uma outra vida, para outras vidas que não a sua.

Foi assim que lhe propôs aquela viagem, naquele dia. Sem se questionar porque teria sido aceite. Sem analisar mais profundamente o que poderia viver do outro lado. Para si era certo que o sentimento era só seu e impossível de partilhar. Como combinado encontraram-se à porta da estação. Como sempre acontecia chegaram ambos antes da hora marcada. O destino fora previamente definido e as passagens antecipadamente adquiridas. Entraram na carruagem e sentaram-se lado a lado. Aguardaram o horário de partida percorrendo notícias no jornal e revista publicados nesse dia. Os momentos de silêncio não eram usuais, sentiu alguma ansiedade em redor da forma como haveria de quebrar aquele. Reassumia a formalidade da personalidade decidida. Afastava a tentação do que sentia. Sempre que conversavam olhava-a bem nos olhos, sem reparar que estavam fixos nos seus. Eram vastos. O branco brilhante de sorriso abraçava aquela pequena castanha amadurecida, no centro. Deliciava-se naquele frente a frente vivo.

Pousou o braço esquerdo no apoio que separava os dois lugares. Não se apercebera que o direito dela já por lá estava. As suas peles tocaram-se. Ia afastar o braço quando um assalto interior lho mandou permanecer. Sentiu que as peles não se tocavam. Encostavam-se. Toda a sua atenção concentrou-se no absorver de sentidos. Escassos segundos em que quis apreender um aglomerado de sensações, na ilusão de as guardar, de as poder reviver, de as reavivar. Foi com a mão direita que ela lhe chamou a atenção para um pormenor na paisagem. Os braços separaram-se. E no silêncio do seu interior quis congelar a sensibilidade experimentada. Havia uma parte de si a ouvi-la e outra a tentar que as suas palavras lhe tocassem como a sua pele lhe havia feito.

Mais uns quilómetros de ideias trocadas, conversas continuadas e ao oferecer-lhe pastilhas na palma da mão estendida, os dedos que escolheram o doce ofertado arrastaram-se pelas falanges dos seus dedos e, antes de pegarem na guloseima, abriram-se de novo, recuaram, forçaram espaço entre os seus, entrelaçaram-se e abraçaram a sua mão. Baixou o olhar num tempo em que necessitou de confirmar consigo próprio se estava ou não acordado. Levantou o olhar e descobriu um esboço de sorriso nos lábios dela, um rascunho de ternura no seu olhar. Deixou seus dedos corresponderem no abraço e o silêncio tomar conta da troca de olhares. As pálpebras dela desceram e a boca avançou na sua direcção. Sem que palavras o pedissem levou seus lábios ao encontro dos dela, sem questionar a verdade do que estava a acontecer, a certeza do que estava a sentir. Secos, os lábios humedeceram-se. O comboio assinalava o final da sua marcha.

Fechou o livro com o som seco de embate das páginas e colocou-o na mala de mão. Levantou-se em direcção à bagageira, tirou a mala de viagem e dirigiu-se à porta. Quando descia os degraus para pisar o cais de chegada, pensava para consigo própria: “Até eu poderia escrever um livro assim… poderia ser eu a protagonista duma estória assim.”


Passos com olhares, ao invés de ampliações, são palavras trazidas pela inspiração e posteriormente complementadas pela objectiva do olhar da Sonja.


4 comentários:

elsafer disse...

sim, seria um bonito livro , num cenário com a profundidade da imagem apresentada.

Anónimo disse...

Viver a vida de um livro. Retrato fiel da realidade. :)

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

a foto que inspirou a narrativa é realmente muito boa.

o texto impecavel!

beij

AnaMar (pseudónimo) disse...

A foto , magnífica.

Passos com olhares de outros que escreves num livro por terminar.

Escondes na contracapa o olhar com que desfilas a vida.

Espero que reponhas o livro na estante, para então , apreciar as gravuras, exultar com o Prefácio e então exclamar: faltam as páginas do meio. Sem fim...

Bj