quarta-feira, 21 de outubro de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?

Foto de Philip LePage


Com o auxílio do responsável pelo Centro de Língua Portuguesa não foi difícil conseguir quem a conduzisse até Massinga. Fanuel era ainda jovem mas a pele carregava já o peso de muitos dias corridos entre a desventura duma vida mais lutada do que vivida. Tinham-lhe assegurado que estava habituado a fazer esta ligação que cruzava parte do trajecto entre Maputo e a Beira.

Na estrada de terra batida abriam-se buracos, crateras, autênticos degraus que a viatura tinha de subir e descer. Inesperadamente um desvio por terrenos desbravados entre a arborização era opção única à zona obstruída para obras, sem qualquer aviso prévio. Mais adiante pequenas áreas de alcatrão desgastado descobriam-se no meio da poeira alaranjada que mancha o caminho e as ruínas de construções em madeira, lutando por se manterem em pé. Ao atravessar um aglomerado de habitações mais cuidadas, que anuncia a realidade duma povoação, alguns edifícios mantêm marcas de balas duma guerra civil que a muitos assustou a vida e cansou precocemente a idade. Num edifício rasgado por uma dezena de janelas no rés-do-chão e varandas sustentadas por colunas, no primeiro andar, aloja-se uma escola primária que termina numa torre com um sino.

Conforme a distância se encurtava, sentia o seu coração precipitar-se numa batida descontrolada e agressiva. Queria acreditar estar finalmente perto o objectivo que a levara a deixar Portugal e percorrer mais de oito mil e quinhentos quilómetros.

Finalmente, Fanuel indicou-lhe um pequeno grupo duma dezena de crianças que, sentadas no chão, se prendiam numa atenção extremada à voz pausada da irmã Giovanna, que fugia do italiano em busca dum português tentado. Colmos, apoiados em ramadas secas, serviam de parede e de tecto ao que seria a sala de aula. Aproximou-se do grupo e esperou que a sua presença fosse notada. Pressentiu que já a tinham percebido. Deixou que a irmã Giovanna tomasse a iniciativa. Demorou poucos minutos para que concluísse com as crianças e se lhe dirigisse.

- Buon dia. Posso aiutar?

- Bom dia irmã. Venho de Lisboa à procura do Dr. Miguel Albergaria.

A irmã Giovanna tentou controlar uma maior expressividade no rosto. Segurou-lhe num braço e…

- Acho melhor irmos falar com o Senhor Padre.

Sentiu o tempo parar naquela curta caminhada até à porta que dava acesso à habitação do Padre Salomão. As palavras emudeceram. O tempo tornara-se um vácuo. Entrou. As mãos tremiam-lhe. O sacerdote pediu-lhe para se sentar numa cadeira enquanto a irmã Giovanna providenciava um copo de água. Paulatinamente o Padre Salomão, entre desculpas, revelou-lhe que o jipe onde Miguel Albergaria se fazia transportar há menos duma semana atrás, se incendiara e o seu corpo ficara totalmente carbonizado.

Num flash reviu imagens dos últimos meses. Agora o presente era um ecrã branco, sem imagem, sem som. O amanhã perdera a projecção. Em sucessivos ontens não assumira os hojes. Recusara, adiara… confiara no amanhã. Hoje percebia que o amanhã se extinguira!


Antecedentes

4 comentários:

Sonia Schmorantz disse...

Só este minuto é presente, todo o resto poderá ser ou não, ou já foi...
Um abraço

C. disse...

Não esperava este desfecho para a procura dela. Mas não vai ficar assim, pois não? Terá ele morrido mesmo? Sendo assim, o que vai ela fazer?

Conte lá o resto :-)

Tia [Zen] disse...

Triste quando um sonho se perde... quando deixamos que se perca.
Será?

Um beijo

AnaMar (pseudónimo) disse...

Por vezes eu gostaria de saber viver um pouco mais devagar.
Por vezes, passo pelos dias e nem me apercebo do hoje. Estou já no dia seguinte.
Com a mulher do conto, sucedeu o contrário.
Adado ou antecipado, o momento quer-se no tempo certo.
Racionalmente sabemos. Emocionalmente...

Inté jazz
Bj