quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS

Foto de Benoit Michelot


Quando o braço se estendeu pelo espaço vazio a seu lado, sentiu-se chamada para o estado de lucidez. O lençol branco ainda marcava a temperatura do corpo recentemente apartado. De olhos fechados fez as costas da mão esquerda caminharem pelo espaço de onde esse corpo se ausentara. Procurando reconhecer marcas deixadas pela noite, talvez confirmar que o acordar para que se sentia puxada era um terreno diferente do sonho.

Começava a manhã. Sentia-se envolta em confiança e conforto. Teimava em não abrir os olhos com receio de que ficasse para além da fronteira daquela vigília em que se sentia segura. Tão inesperadamente segura.

Finalmente, abriu os olhos. Não havia sinal da luz do dia. Não se lembrava se descera a persiana. Que interessava saber se o dia acordara? Sentia-se, hoje, dona do seu tempo. Como se finalmente tivesse encontrado um espaço onde se encaixar na perfeição. Aos poucos saía dum idílico estado de embriaguez. Conforme regressava à consciência, as memórias da noite anterior tomavam a forma dum guião estudado, sabido, claro.

Ouvia correr a água do duche. Decidiu ignorar a pressa das horas. Mas não conseguiu evitar um fio de ansiedade subir-lhe do ventre ao peito. Que continuidade teria aquela noite? Sentiu um desconforto nas costas. Virou-se de bruços. Escondeu o rosto parcialmente debaixo da almofada. Não seria agora que lhe chegaria a tranquilidade duma resposta. Fechou os olhos de novo. Ignorou o dia e o silêncio deixado pela torneira que cortara o fluir das águas.

Sentiu os passos. Ouviu-o assomar à porta do quarto.


6 comentários:

Anónimo disse...

A ansiedade de um recomeço.

Unknown disse...

A bela ilusão da segurança, do espaço onde se encaixar na perfeição, o idílico estado de embriaguez, a sensação do domínio do tempo, ao som do fluir da água, momento perfeito a prolongar, mas

cortado pelo silêncio do término do duche, do irromper do dia, obstinadamente ignorado, pelos passos de quem deixou marcas, mas não sabe segurar o amanhã...

regressa a ansiedade, agarram-se os momentos de ilusão, a vida é assim, um fluir e cortar de águas...

AnaMar (pseudónimo) disse...

...À espera da continuação :-)

Rotinas domésticas ou talvez não. Aventura. Encontro consigo própria. Gestos repetidos como se fossem unicos.
Acordar para avida.

Bj

Gi disse...

E depois?

Alexandra disse...

'Sentiu um desconforto nas costas. Virou-se de bruços. Escondeu o rosto parcialmente debaixo da almofada. Não seria agora que lhe chegaria a tranquilidade duma resposta.'

A instabilidade da existência!

Chegará a resposta esperada/desejada?! Mais uma ilusão, mais uma (des)ilusão... ...

A vida tem que ser assim?

Luz disse...

Segurança insegura..., estabilidade instável..., tranquilidade intranquila..., existente inexistente..., ilusão desilusão...,
uma noite no despertar para o novo dia onde o receio se antecipa ao que se auspicia...