domingo, 8 de março de 2009

INVEJA

Foto © Ben Rudick [recolhida aqui]



Dum modo geral, não me considero invejoso. Se gosto dum carro, faço-o porque o acho atraente, mas não cobiço. Normalmente, estabeleço os meus padrões de desejo por mim mesmo, pelo que tenho possibilidade de obter, e não pelo que os outros têm, demonstram ou ostentam. Não me considero invejoso relativamente a objectos, nem a pessoas ou tipos de vida. Contudo já não poderei dizer o mesmo no que respeita a criações. A elas próprias e não aos seus autores. É como se me questionasse porque é que determinada obra pertence ao autor que a concebeu e não a mim.

Esta inveja acontece quer relativamente a um poema, a uma melodia, a um bailado… mas de quem tenho realmente inveja é das criações publicitárias. Bolas!... algumas há que me dão uma raiva… como é que elas não nasceram de mim? Como é que não fui capaz de idealizá-la(s)? A mensagem é tão óbvia. A solução é tão simples, que qualquer pessoa no mundo a poderia ter imaginado. Sim, porque acho que toda a arte reside na simplicidade com que se transmite essa singeleza dum acto natural do dia-a-dia, da vida.

E para citar um ou outro exemplo, começarei pelas imagens que a SIC Notícias tem passado com a interpretação de Bem Bom, na voz de Rui Reininho. Como foi possível trabalhar uma canção, de qualidade duvidosa, direi eu, e adaptá-la ao ritmo duma estação de notícias. Confesso que a versão de Reininho já me havia cativado, mas a roupagem que agora lhe foi dada, considero super… até tenho inveja! A simbiose do excerto da letra utilizado com as imagens, a forma como Reininho passa, aparentemente, despercebido a todo o trabalho de preparação das notícias a serem, mais tarde, difundidas, porém, inconscientemente, marcando-lhes o ritmo, são ideias que gostava de ter sido eu a ter. E aquele ‘café da manhã para dois’…

As coreografias de Mats Ek. O coreógrafo sueco, para mim um génio, utiliza os movimentos mais básicos da dança. Porém exige aos intérpretes que os dimensionem acima do que é natural. Se formos capazes de dissecar cada sequência, perceberemos como o simples é muito mais eficaz do que o rebuscado, o elaborado. Mats Ek concilia esta simplicidade de movimento a uma sensibilidade poética nas mensagens que transmite. Mas para além disso, as suas criações transmitem a frontalidade e o humanismo dum senhor que não é por ser o criador que é, que deixa de ser um Homem, com letra maiúscula. Eu queria ter sido o coreógrafo de muitas, porque não todas, as obras coreográficas que têm a assinatura Mats Ek. Para quem não conheça e sinta curiosidade, espreite
aqui. E digam-me quem não gostaria de ter ‘a mão’ a tapar-lhe os olhos antes de passar a porta do desejo? Seria possível com movimentos tão simples como dobrar os joelhos, manipular o movimento do outro e, reciprocamente, ser manipulado, dizer tanto, de alguma outra forma? O segredo está na simplicidade e na amplitude… no simbolismo de cada gesto e de cada objecto utilizado. Mas o movimento de Ek é, ainda, docemente erótico.

Também tenho inveja da Noite passada ter sido escrita pelo Sérgio Godinho e não por mim. É tão bela, mas tão evidente… tão fácil. Não é o amor uma corrente de água que corre para uma superfície incomensuravelmente maior e desconhecida? Como não poderia o amor correr num rio? Como não poderá ser a mulher amada um misto de sereia e ave, que voa, que foge, à espera, a desejar ser abraçada? Como não pode parecer que, no amor, nos conhecemos há muito tempo, mesmo que na realidade o ‘confronto’ tenha sido à breves instantes? Por onde foge o amor se não por frestas? Onde, se não no amor, nos conseguimos ver em segredos, nos locais onde não estamos, onde não estivemos? Apenas fomos desejados… Onde, se não no amor, o regresso deixa marcas que não se vêem… mas sentem-se? È tão evidente! Só não consigo admitir que não tenha sido eu! Que inveja… era tão intuitivo que se ‘descias o Douro’, eu ter-te-ia de ‘esperar ao Tejo’… e só poderias ter vindo ‘numa barca que não vi passar’. Porque é que não me lembrei? Que inveja!!!...

1 comentário:

Marta disse...

Que todas as invejas fossem, assim, como a sua :)
As ideias geniais valem ouro! E, na publicidade,então, é um facto. Valem mesmo.
No entanto, custa-me bastante a desvalorização das ideias. Essa matéria-prima que não se apalpa.E deparo-me com ela no meu quotidiano laboral. Tantas vezes.
Uma ideia simples, feliz, óbvia ou menos obvia é algo extraordináriamente valioso! é digamos que a fusão perfeita entre teoria e operacionalização... tanta coisa para dizer sobre isto...adoro a palavra mentor!
E gostei tudo tanto desta relação de coisas simples; a reinvenção da música das Doce, as coriografias Mats Ek, o poema que o Sérgio Godinho canta! Conseguiu ligá-las num fio condutor interessante, só para assumir a sua inveja :)
Ora! com certeza já inventou outras coisas que outros invejam :) Pense nisso!
E continue intercalando os seus poemas, com esta prosa!