
Foto de Benoit Michelot
Os primeiros passos da manhã levavam-me até em frente ao espelho onde, ainda sem me ver, começaria a remoção dos pêlos que diariamente se repõem após cada dezena diária de minutos gastos para os eliminar.
Acordara com aquela sensação de que se me sentasse ao teclado, as palavras se despejariam dum segredo construído no sonho nocturno. Tentava colher palavras soltas, ideias desgarradas, para juntar em constelações a construir. Tentava que a inspiração não me fugisse por entre a água com que molhava a cara.
No espelho, os olhos pareciam ser relevo desadequado. Àquela hora era impossível perceber se guardavam algo do que tivessem contemplado durante o sono.
Continuei os preparos matinais sempre com o inquietante sentimento que desperdiçaria a oportunidade de deixar as palavras se sucederem. Era certo que após a primeira, outras viriam. Reforçava aquela sensação de que as secava, por mais que as procurasse acender, na água com que fazia a espuma, a qual me preparava o rosto para a passagem da lâmina.
Estaria a castrar as palavras em cada pêlo rasurado?
5 comentários:
Impressionante como algumas palavras surgem de repente e logo a seguir se esvaem sem que nossa mente consiga capturá-las depois...talvez tivesse que primeiro ir ao teclado, rsss
um abraço
Não. Estavas, apenas, a laminá-las.
Algumas vezes tenha a sensação de que existe um certo espaço, como um vácuo, entre a noite e o dia. Lá, imagino, residem todas as minhas criações brilhantes. Será isso o paraíso?
Zaclis
Adoptaste um estilo mais divertido aqui que, por não ser usual em ti, fez a diferença...
Que seca isso de ter que passar a lâmina todos os dias, não?!
Beijo... mas só depois da barba feita :-)
O gesto pode ser significativo de castração. Sem dúvida. Mas elas, as palavras, permanecerão sempre, mesmo que escondidas bem lá no fundo. Contudo, um dia vão emergir, seja qual fôr a via.
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