domingo, 5 de julho de 2009

PITIÉ!

Foto recolhida aqui


Antes das luzes se apagarem foi pedido um minuto de silêncio por Pina Bausch. Terão sido raríssimas as vezes de que me lembro uma plateia ter cumprido tão rigorosamente mutismo absoluto por tão longo tempo. Não se ouviu um único tossir, espirrar, fungar, acerto de garganta… foi bonito de sentir.

Quando o pano revelou a cena, perceberam-se uma dúzia de peles pendendo de diversos pontos da estrutura da teia. Na mezzanine duma estrutura revestida a madeira, oito instrumentistas; sentados ao redor duma mesa, três cantores; num banco ao fundo da cena, oito bailarinos. Descobrir-se-ia pouco depois que enormes lençóis de plástico encobriam os corpos dos bailarinos que totalizavam a dezena. O silêncio foi cortado por um grito: ‘Que as palavras se transformem em carne!’. Ditas em português, por uma voz que reconheci… e me provocou mais um arrepio... era a do Romeu, do Romeu Runa.

E os corpos começaram a gritar, a usar a pele e a carne, para escrever sobre compaixão, sofrimento, misericórdia, amor. Platel usa uma mensagem comum a muitas das narrativas sobre a história de Cristo: ‘Amai-vos uns aos outros.’ para trespassar para a plateia o sentido de amor ao próximo. Outra referência a que recorre é da própria
Paixão segundo São Mateus ‘estamos na terra para morrer’. Porque ‘qualquer nascimento é uma condenação à morte’ pretende o criador belga que os espectadores sintam a irreversibilidade da necessidade de cultivar a solidariedade, ‘alicerçada na consciência partilhada de que somos todos iguais; que vamos todos morrer e que, talvez, um sentimento de misericórdia possa emergir’.

Os corpos não dançam! Movem-se usando toda a beleza que pode advir da expressão de um corpo que quer dizer. A pele é, quase, literalmente arrancada à carne. Os bailarinos usam-no para sentirem o outro, para o moverem, para lhe provocarem a reacção. Não são movimentos bonitos. Serão mesmo incomodativos. Mas deles nascem ondas de sequências onde a harmonia toma conta de dez corpos expressando-se em uníssono, um vocabulário corporal que nasce nas vísceras, que tresmalha a carne, arranca a pele e esbofeteia a plateia. São sucessivos murros no estômago que o espectador vai sofrendo na sua contemplação.

É a arte de Platel, mas nunca deixa de surpreender quando a dado momento o contratenor se revela um bailarino tão exímio quanto os outros que o haviam assumido desde o início. Quando nos surpreendemos ao ouvir um coro, e julgamos tratar-se de música gravada, mas ao procurarmos com mais atenção nos apercebemos que são os próprios bailarinos a consegui-lo. Quando se identifica uma quarta voz, e nos questionamos quem será, e acabamos por descobrir ser o instrumentista que toca flauta transversal. Ou ainda quando um novo ‘coro’ nos leva a perceber que agora é a vez dos instrumentistas calarem o violino, o acordeão, a percussão, o trompete e o violoncelo, para usar somente a voz.

As surpresas são ininterruptas. Quase nos sentimos tentados a usar o comando, de que não dispomos, para ordenar o
rewind e ver de novo, agora em câmara lenta. Quando se ouvem os primeiros acordes da adaptação, composta por Fabrizio Cassol, para a ária Erbarme dich, não é a pele que se arrepia. É todo o corpo que se contrai. É, também, essa uma das leituras possíveis nos corpos dos que dançam. Na partitura os instrumentos vão alternando protagonismo entre si e com as vozes.

Ao fim de duas horas o espectáculo deixa-nos de rastos pela sua singularidade, pela forma como vinte e um intérpretes deixam ali pedaços arrancados à sua alma.

Por mim, creio ser impossível falar desta obra, pois, na realidade, as palavras transformam-se em carne. E é esta que sofre, que grita, que se move, canta, toca e grita palavras que não se escrevem. Parafraseando Alain Platel ‘A presença da pele e da carne exprime a necessidade irreprimível de sentir o outro’. Para amar, para ter compaixão, para morrer com


pitié! de Alain Platel e Fabrizio Cassol esteve no CCB, nos dias 3 e 4 de Julho e estará no Teatro Nacional S. João, nos próximos dias 7 e 8 deste mês.


2 comentários:

Alexandra disse...

Foi escrito com alma e, é impossível não se ler com alma. De tal forma que a descrição tão pormenorizada nos arrepia e comove... porque se existem verdades, esta é uma delas: «‘A presença da pele e da carne exprime a necessidade irreprimível de sentir o outro’. Para amar, para ter compaixão, para morrer com »

Gi disse...

Passos de maestria, Passos de magia.