quinta-feira, 16 de julho de 2009

O FORASTEIRO

Foto de kuronakko


A sala estava cheia, como era usual, mas o serviço matematicamente calculado não obrigava longas esperas a quem chegava para almoçar.

Enquanto esperávamos pelo bacalhau com natas servido na frigideira de barro, eu e Diana conversávamos sobre o lançamento do primeiro livro de Afonso e da surpresa que ela idealizara preparar-lhe. Diana não se continha na sua excitação com este sucesso do seu companheiro. Não falava muito, mas o seu sorriso eternizava-se nos lábios e seguramente no peito. Em cada palavra irradiava uma infinita esperança de êxito.

A porta, para onde ambas estávamos voltadas, abriu-se uma vez mais. Entrou um homem que não era habitual ali, pelo menos aos almoços. O senhor Pacheco perguntou-lhe se estava sozinho e perante a sua resposta afirmativa preparou-lhe uma mesa junto à janela. Havia algo de indefinido na sua idade. A cor do cabelo, a inexistência do mesmo em algumas zonas, mas sobretudo as rugas que lhe marcavam o rosto, atribuíam-lhe uma idade não condizente com a sua silhueta, a sua postura, a forma como vestia. No seu olhar havia uma gruta por explorar. Olhou todas as mesas, como se procurasse reconhecer alguém. Eu observava-o quando parou na nossa mesa. Senti que logo em seguida o seu olhar se cruzou com o de Diana. Caminhou até ao seu lugar. Sentou-se de costas para a janela, com visão total sobre quase toda a sala.

Diana lembrara-se de pedir ao Miguel que viesse à sessão de lançamento da obra de Afonso. Há ano e meio que Miguel partira para o Chile. Desde então nunca mais o viramos. Ainda não voltara a Portugal. O livro de Afonso visitava episódios de infância e sem que citasse ou referisse explicitamente Miguel, sabíamos que ele passeava por muitas daquelas páginas. Era essa mais uma razão para que o amigo e sociólogo fosse a pessoa ideal para o evento de apresentação. Diana convencera Leonor a explicar a Afonso a importância, para a editora, em poder contar com um professor da Universidade Clássica, a quem dera o livro a ler e que, pelo entusiasmo demonstrado pelo mesmo, se revelaria um trunfo maior para aquela ocasião. Não foi difícil a beleza, o charme e a posição de Leonor lançarem confiança em Afonso.

Enquanto discutíamos pormenores olhei em direcção da janela e o meu olhar cruzou-se com o do homem sentado de costas para a rua. O bacalhau com natas chegou e durante a sua deglutição, inexplicavelmente, o meu olhar seguiu repetidas vezes o mesmo caminho, encontrando o dele na minha direcção. Ou seria nossa? É que Diana, de costas para ele, algumas vezes extemporaneamente virou a cabeça para o observar.

Miguel chegaria na sexta-feira e ficaria em minha casa. No entanto, teria de ser Diana a ir buscá-lo ao aeroporto e levá-lo para minha casa. Ainda que tudo estivesse repetidas vezes verificado, eu e Diana ensaiámos, de novo, todos os passos. Diana não parava de sorrir ao imaginar a reacção emocionada de Afonso ao deparar-se com o seu amigo para apresentar o seu livro. E mais uma vez o meu olhar foi em busca daquela gruta que parecia me convidar a entrar nela.

Enquanto pedimos o café, o forasteiro prolongava a sua refeição com uma sobremesa de cerejas. Quase pressenti um desafio para tentar decidir quem terminaria primeiro. Quem iria saldar a conta e sair à frente. Quem iria renunciar àquele jogo de olhares.

Fomos nós! E num esforço não o desafiei no último cruzamento. Mas ao passar a porta senti, nas nossas costas, o seu olhar seguir-nos.

3 comentários:

Gi disse...

Ao ler este teu texto senti-me uma forasteira, daquela que não sabe de que terra é e onde tu queres chegar.

elsafer disse...

interessante , parece algo energético ...
;)

Tia [Zen] disse...

Realidade ou ficção? Pouco importa, de facto...
Muito agradável de ler.