sexta-feira, 3 de abril de 2009

CONTA-ME UMA HISTÓRIA [de mãos dadas, choupal - coimbra]



- Pai, conta-me uma história!
- Aqui? Agora? Nem sequer trouxe um livro…
- Mas pai… apetece-me uma história!
- … uma história?... estamos a passear…
- Conta-me uma história… vá lá…
- Sabes que todas as noites te leio uma história, mas não tenho jeito para as contar sem livro…
- Inventa!
- Não sei inventar histórias…
- Então conta-me uma real!
- Uma história real? Sobre o quê?
- Tu é que sabes! Tu é que a viste… ou ouviste!
- Vamos ver… na margem dum rio havia um salgueiro cujas folhas caíam com muita facilidade. Era um salgueiro crescido. Houve uma altura em que essa árvore estava muito, muito triste e nas folhas que perdia estavam escritos os seus desgostos, as suas perguntas, as coisas que muito queria e outras com que sonhava. Na outra margem desse mesmo rio, mas muito longe dali, havia uma flor com pétalas amarelas, mas tantas, tantas, tantas que parecia um areal de pétalas tal era forma de se disporem umas agarradas às outras, umas sobre as outras. Esta flor gostava muito de estar virada para o sol… que a aquecia… que lhe dava luz… sabes como se chamava esta flor?
- … era amarela?... gostava do sol? … ternura do sol! Era?!...
- Não!… esta flor chamava-se girassol. Como te disse, o salgueiro perdia muitas folhas que caíam no rio… e levadas pela corrente navegavam à superfície das águas até se perderem… Um certo dia, a flor que estava na outra margem, viu uma dessas folhas e… pegou nela… olhou-a… e percebeu que a podia ler… a flor conseguia perceber o que a folha do salgueiro queria dizer. Depois de a ler uma, duas, três vezes… guardou a folha muito escondida e… ficou com atenção às águas do rio. Acabou por perceber que mais folhas vinham, como que perdidas, trazidas pela corrente. Foi pegando nelas, lendo-as e guardando-as. Começou a gostar tanto do que lia naquelas folhas que teve vontade de dizer qualquer coisa sobre elas. Arrancou uma pétala e pediu ao comandante do cardume de peixes, que todos os dias nadava contra a corrente do rio, que a levasse a um salgueiro que estaria na outra margem do rio com um aspecto muito sensível.
- O peixe lá levou a pétala, com muito cuidado, à procura dum salgueiro que tivesse um ar muito sensível… ‘Esta flor inventa com cada coisa!’, pensou o peixe; ‘não tivesse ela a luz que tem…’, continuou o peixe nos seus pensamentos, até que reparou num salgueiro com muitas folhas caídas à sua volta. ‘deve ser este!’, arriscou; ‘salgueiro, tens aqui uma pétala que mandaram para ti’. O salgueiro pegou na pétala, leu-a e ficou feliz por alguém lha ter oferecido. Depois desta primeira troca, as folhas do salgueiro continuaram a flutuar na corrente do rio e as pétalas da flor nadavam contra a corrente com o cardume de peixes. Foram tantas as folhas e pétalas trocadas que o salgueiro e a flor ficavam cada vez mais ansiosos pela chegada de novidades. Estavam muito longe um do outro, mas era como se sentissem muito perto. Em cada folha perdida, em cada pétala arrancada, foram percebendo que gostavam de tanta, mas tanta coisa em comum… que quase parecia não ser possível. O tempo voava e quase todo, aqueles dois seres consumiam-no a trocar folhas por pétalas, pétalas por folhas. Um dia, a flor teve uma vontade tão grande, tão grande de ver o salgueiro… que lhe mandou o seu olhar, nítido como um girassol O salgueiro, ao recebê-lo, nem quis acreditar, não poderia estar a acontecer… e na resposta mandou, à flor, o seu olhar.
- Mas… oh pai… as árvores não têm olhar!... nem as flores!
- Espera!... já vais perceber…
- A partir daquele dia, tanto o salgueiro quanto a flor conseguiram ver-se melhor, porque tinham o olhar um do outro.
- Mas, oh pai… explica-me lá essa ‘história’ do olhar que eu não estou a perceber nada… Ah e é verdade, não inventes porque eu pedi-te uma história real!
- Sim, eu sei. Nem o salgueiro, nem o girassol têm olhos… mas o olhar é uma capacidade que não se resume aos olhos… todos nós conseguimos também ver com a alma…
- Com quem? O que é que é isso? … é alguma lente para os óculos?...
- Nããão! A alma é uma coisa que anda dentro de cada um de nós e, de repente, sai de nós para ir ao encontro do outro, sem nos dizer nada, e só para tentar perceber o que o outro sente…
- … está bem… Continua lá…
- Passaram-se mais alguns dias até que decidiram que não deveriam mais trocar nem folhas, nem pétalas, pois qualquer dia, em plena Primavera, iriam ficar totalmente desnudados e… o Outono ainda estava muito longe. Como a distância entre as duas margens onde estavam era muito grande, decidiram-se pelo silêncio… e cada um guardar para si as folhas ou as pétalas de que mais gostavam. E prometeram-se guardá-las até… até sempre.
- …
- Gostaste?
- Já acabou?!... mas, oh pai esta história não pode ser real!
- Mas é verdadeira. Sabes? É que há histórias que mesmo que verdadeiras, são irreais e… se tentam dar o passo para o domínio do real, perdem toda a beleza que a verdade do irreal lhes concedeu…


[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

2 comentários:

Marta disse...

tanto. tudo íssimo.
no superlativo absoluto sintético. mil vezes :)

Milouska disse...

Difícil para uma criança perceber, mas a história é lindíssima.
A imaginação não tem limites e as metáforas também não.
Um abraço e bom fim de semana,

Milouska