terça-feira, 12 de janeiro de 2010

QUANDO A MEMÓRIA SORRI

© Mal Smart


A noite fechava-se sobre aquela sexta-feira aziaga de Março. A Primavera anunciada fora, nesse dia, ultrapassada por um final inesperado. Torceram-se num nó as horas daquele dia. E esse laço involuntariamente apertado, ainda hoje se lhe ata na garganta quando revê as memórias cujo perfume se liberta do interior do peito e lhe arrepia a pele.

Uma viagem que se tornara obrigatória, parecia ir separá-los mais do que a distância geográfica já o fazia. A proximidade que os unia compulsava-se em trocas sucessivas como duas mãos agarradas recusando o afastamento. Pedaços que se ofereciam com a certeza de saciar uma sede que nascida na boca de cada um só desaguava na do outro. Ilusões irracionais de quem se entrega na emoção. Sob uma seara árida de sorrisos semeavam ‘gostares’ que se reproduziam em afinidades tornadas inquestionáveis.

Entre as permutas que pareciam querer segurar o que o inevitável iria apartar, chegaram-lhe aquelas palavras, às quais no imediato até nem deu suficiente atenção. Mas quando as leu, releu-as. Entrou com surpresa e sem que desse por isso, o deslumbre apossara-se da leitura. Vestiu as palavras como se da própria pele se tratassem. Como se alguma vez aquela membrana lhe tivesse sido retirada e naquele dia chegara a oportunidade de a recuperar. Teve a certeza de que naquela noite o nó não poderia ser desapertado. Pelo contrário, os laços haviam se estreitado. A convicção era um abraço e sabia que naquela noite iria dormir tão feliz que nem conseguiria fechar os olhos. A resposta chegou-lhe no anúncio de que existem pessoas a quem não é preciso chamar de nada para sempre terem sido e continuarem a ser especiais.

Como numa estação onde os comboios chegam, partem e apenas permanecem por um tempo sempre com término, assim os meses se sucederam. A Primavera anunciada acabaria por chegar. Sucedeu-se-lhe o Verão. O Outono caiu em folhas. E o Inverno trouxe temperaturas gélidas alternadas com dilúvios prolongados e inusitados. Foi num desses dias que o sol se descobriu quando com surpresa encontrou, num mapa desdobrado para o mundo, aquelas estradas que só os dois haviam percorrido na já distante noite de Março. Foi nesse dia que recuperou um bálsamo que lhe aquecera o coração. Sentiu a pele sorrir. E teve a confiança que mesmo mostrados ao universo há percursos cujo significado só serão entendíveis por quem os percorreu.

Encostou-se no cadeirão do tempo. Cruzou as mãos, cerrou as pálpebras e voou na escrita. Não tinha dúvidas de que só o sentimento poderia ler interpretações a dois. Nesse momento recuperou o sabor do sonho e sussurrou Eu adoro voar!


3 comentários:

Sonia Schmorantz disse...

Excelente, esta leitura foi especialmente boa para mim!
abraço

Unknown disse...

sim!

sabe bem saber-se voar,
sabe melhor ainda voar mesmo...

voos distantes, passados, que nos sabem bem recordar,
voos futuros que sabem bem sonhar,
voos presentes que sabem mesmo bem...

é pena, as condições climatéricas nem permitirem sempre os voos...

Vera de Vilhena disse...

Hmm, que bom, este bocadinho. Obrigada.