sábado, 31 de outubro de 2009

NUS LIVROS


Quantos segredos se escondem
por detrás das palavras que se expõem?
Quantos sonhos se revelam
por entre vocábulos que se mascaram?
Quantos termos se perdem
por entre linhas que fogem?
Quantas páginas se escrevem
por entre gritos que se arrepiam?
Quantos voos se traçam
por entre céus que se desenham?
Quantas portas se abrem
por entre versos que se encadeiam?
Quantas origens se descobrem
por entre desejos que se alcançam?
Quantos sentimentos se iludem
por entre significados que se decifram?
Quantos suspiros se ouvem
por entre a nudez que se escreve?

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

NORTADA

Foto de Rodrigo Sousa recolhida aqui


Uma seara à espera do vento. Um regresso em que os passos já não nos servem. Memórias que nos pertencem, mas a cuja rotina temos de nos ajustar. Como a própria Olga exprime, a Nortada sopra num ‘lugar invadido de nostalgia, de saudade, de intimidade’. É um olhar para o ontem através da visão duma criança que já não é, mas que fica eternamente presa às raízes, por mais que a distância as separe.

Uma afagosa ambiência íntima, pessoal vai-se esgaçando em sugestivas imagens, ainda que próprias, menos particulares. A primeira nasce de dentro para fora. Exterioriza-se. Amplia-se. Difunde-se. As últimas são observadas, cheiradas, apalpadas antes de serem apreendidas, interiorizadas e possuídas. Ter-me-á sido difícil ler a obra em continuidade. O que experimentei no início e me cativou, acabou por se revelar menos legível, ou mesmo indecifrável, com o decorrer do tempo. Creio não ser possível dissociar o facto da Olga ter ousado permitir que os intérpretes colaborassem num desfolhar de páginas de memórias tão pessoais, as quais dificilmente algum deles poderá ter partilhado. Possibilitou, assim, ‘desenformar’ a leitura, torná-la mais dilatada. Contudo ter-se-á dissolvido a privacidade nostálgica de memórias que lhe são exclusivas.

Foi-me agradável observar nesta mais recente criação de Olga Roriz, um registo mais poético, sereno e tranquilo, aqui e ali marcado por notas de humor. Regozijei-me de ver no mesmo palco, como intérpretes, pessoas com quem a minha vida profissional se cruzou em momentos distintos.

Nortada não será uma obra de referência no reportório de Olga Roriz, mas uma sentida homenagem de alguém a um passado que lhe pertence e com o qual pretendeu encurtar distância.


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

À DISTÂNCIA DUM OLHAR

Foto de Vera

Escolho uma cadeira
puxo um lugar
e sento-me
na areia
onde o mar me vem beijar,
olho
observo
contemplo...

Poiso os braços sobre a água
estendo o meu olhar
até ela
àquela linha
que separa o céu do oceano
[ou será que os une?...]

Tento agarrar
a irrealidade desta realidade
só para me certificar
que o horizonte é alcançável
quando o infinito
está à distância
dum olhar.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A SUSPENSÃO DOS PASSOS

Foto de Benoit Michelot


Quando o braço se estendeu pelo espaço vazio a seu lado, sentiu-se chamada para o estado de lucidez. O lençol branco ainda marcava a temperatura do corpo recentemente apartado. De olhos fechados fez as costas da mão esquerda caminharem pelo espaço de onde esse corpo se ausentara. Procurando reconhecer marcas deixadas pela noite, talvez confirmar que o acordar para que se sentia puxada era um terreno diferente do sonho.

Começava a manhã. Sentia-se envolta em confiança e conforto. Teimava em não abrir os olhos com receio de que ficasse para além da fronteira daquela vigília em que se sentia segura. Tão inesperadamente segura.

Finalmente, abriu os olhos. Não havia sinal da luz do dia. Não se lembrava se descera a persiana. Que interessava saber se o dia acordara? Sentia-se, hoje, dona do seu tempo. Como se finalmente tivesse encontrado um espaço onde se encaixar na perfeição. Aos poucos saía dum idílico estado de embriaguez. Conforme regressava à consciência, as memórias da noite anterior tomavam a forma dum guião estudado, sabido, claro.

Ouvia correr a água do duche. Decidiu ignorar a pressa das horas. Mas não conseguiu evitar um fio de ansiedade subir-lhe do ventre ao peito. Que continuidade teria aquela noite? Sentiu um desconforto nas costas. Virou-se de bruços. Escondeu o rosto parcialmente debaixo da almofada. Não seria agora que lhe chegaria a tranquilidade duma resposta. Fechou os olhos de novo. Ignorou o dia e o silêncio deixado pela torneira que cortara o fluir das águas.

Sentiu os passos. Ouviu-o assomar à porta do quarto.


terça-feira, 27 de outubro de 2009

NO AMOR DA NOITE

Foto de Vernon Trent


A noite deitou-se na minha cama,
nos lençóis senti o frio da solidão,
beijou-me como uma estrela esquecida.

Falámos de sonhos por descobrir,
percorremos labirintos por criar.

Seduziu-me com a ternura do silêncio
abraçou-me com a escuridão por abrir
fizemos amor até ser madrugada.

… e ao nascerem os primeiros raios de sol
soube que o novo dia era meu!


segunda-feira, 26 de outubro de 2009

RAPTO

Foto de Larz

Surpreendi-te em voo
interrompi-o.
Prendi-te em palavras,
segurei-te os pensamentos,
embaciei-te o olhar.
Raptei o teu corpo.
Na areia queimada pelo sol
deitei-me,
pousei-te nos ecos do calor,
untei
com óleos de mel
a tua pele desnudada.
Levantei uma barreira
para o mar
não se antecipar
na tua submersão.
E…
gota a gota
provei
o sal
duma pele
arrepiada
na entrega
dum sonho.

domingo, 25 de outubro de 2009

PUDESSE

Foto de Doug Roane


Pudessem as asas
marcar o ritmo da escrita…
seriam minhas palavras
quilha para um novo poema.

Da tua pele faria céu
onde adestraria meus dedos
a traçarem rotas de esperança.

Na direcção do vento
tomaria a luz da inspiração;
ninho de lágrimas e sorrisos
onde mora teu coração.

Pudesse o meu querer
voar em vocábulos até ti…
planaria sobre o teu sonho
até sentires minhas mãos
serem plumagem do teu silêncio.

sábado, 24 de outubro de 2009

REDES DE OUTONO


Um bando de gaivotas
transportava pensamentos,
mortalhas da madrugada
consumidas no repouso.
Soprava um vento frio
num suspiro inexplicável,
descoberta de sentidos
aberta pelas palavras.
No mar coberto de névoa
voltavam barcas esquecidas,
remos de braços despidos
ansiosos por atracar.
Por uma janela aberta
entravam segredos despertos,
esconderijos roubados
aos artifícios do coração.
Nas asas do alvorecer
sobrevoei ilhas distantes,
calado roubei sonhos
às mãos dos poetas.
Da areia adormecida
fiz meu leito sem prazo
senti o cheiro do desejo
em cardumes de olhares.
O Outono colorira as redes
dulcificara lágrimas libertas
soltara sorrisos alados
ao assalto dos corações.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

DE TI


De ti
só quero os instantes de tempo
que me furtas para fazer teus;
de ti
só quero a luz do sorriso
em que me iluminas.
Não quero ser barco, nem maré
apenas a areia
onde aqueces a tua pele.

De ti
só quero as letras das palavras
com que me escreves;
de ti
só quero a efemeridade dos sonhos
em que te eternizas.
Não quero ser asa, nem voo
apenas o céu
onde esboças o infinito.

De ti
só quero o ar que expiras
no suspiro que te provoco;
de ti
só quero a inquietude do olhar
onde me sossegas.
Não quero ser flor, nem jardim
apenas o ópio
em que estimulas os teus desejos.

De ti
só quero a manhã das horas
em que me esperas;
de ti
só quero os dedos da mão
em que me prendes.
Não quero ser noite, nem leito
apenas o sono
onde o teu corpo dorme.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

ENREDO SEM HORIZONTE

Foto de Tibor A. Nemes


Projecto-me
para além daquele mar
onde o ziguezague dos dias
se escoa;
Imagem indefinida
entre a memória e o desejo;
A sombra arrastada
dum raio que separa dois olhares;
O dedo que escorre prazer
pelo sabor da pele;
A voz que se enoda
entre a vontade de dizer
e a opção de calar.
Vazam-se os corações
numa sementeira derradeira,
quando as mãos se estendem
num contido desespero
para ainda se tocarem.
A boca morde a pele
que um beijo
é incapaz de agarrar.
A recordação a cicatrizar
na corrida de pensamentos,
navegantes entre o sonho
e um amanhã.
Um rio que desagua
para além daquele mar;
onde me projecto
para te encontrar.


quarta-feira, 21 de outubro de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?

Foto de Philip LePage


Com o auxílio do responsável pelo Centro de Língua Portuguesa não foi difícil conseguir quem a conduzisse até Massinga. Fanuel era ainda jovem mas a pele carregava já o peso de muitos dias corridos entre a desventura duma vida mais lutada do que vivida. Tinham-lhe assegurado que estava habituado a fazer esta ligação que cruzava parte do trajecto entre Maputo e a Beira.

Na estrada de terra batida abriam-se buracos, crateras, autênticos degraus que a viatura tinha de subir e descer. Inesperadamente um desvio por terrenos desbravados entre a arborização era opção única à zona obstruída para obras, sem qualquer aviso prévio. Mais adiante pequenas áreas de alcatrão desgastado descobriam-se no meio da poeira alaranjada que mancha o caminho e as ruínas de construções em madeira, lutando por se manterem em pé. Ao atravessar um aglomerado de habitações mais cuidadas, que anuncia a realidade duma povoação, alguns edifícios mantêm marcas de balas duma guerra civil que a muitos assustou a vida e cansou precocemente a idade. Num edifício rasgado por uma dezena de janelas no rés-do-chão e varandas sustentadas por colunas, no primeiro andar, aloja-se uma escola primária que termina numa torre com um sino.

Conforme a distância se encurtava, sentia o seu coração precipitar-se numa batida descontrolada e agressiva. Queria acreditar estar finalmente perto o objectivo que a levara a deixar Portugal e percorrer mais de oito mil e quinhentos quilómetros.

Finalmente, Fanuel indicou-lhe um pequeno grupo duma dezena de crianças que, sentadas no chão, se prendiam numa atenção extremada à voz pausada da irmã Giovanna, que fugia do italiano em busca dum português tentado. Colmos, apoiados em ramadas secas, serviam de parede e de tecto ao que seria a sala de aula. Aproximou-se do grupo e esperou que a sua presença fosse notada. Pressentiu que já a tinham percebido. Deixou que a irmã Giovanna tomasse a iniciativa. Demorou poucos minutos para que concluísse com as crianças e se lhe dirigisse.

- Buon dia. Posso aiutar?

- Bom dia irmã. Venho de Lisboa à procura do Dr. Miguel Albergaria.

A irmã Giovanna tentou controlar uma maior expressividade no rosto. Segurou-lhe num braço e…

- Acho melhor irmos falar com o Senhor Padre.

Sentiu o tempo parar naquela curta caminhada até à porta que dava acesso à habitação do Padre Salomão. As palavras emudeceram. O tempo tornara-se um vácuo. Entrou. As mãos tremiam-lhe. O sacerdote pediu-lhe para se sentar numa cadeira enquanto a irmã Giovanna providenciava um copo de água. Paulatinamente o Padre Salomão, entre desculpas, revelou-lhe que o jipe onde Miguel Albergaria se fazia transportar há menos duma semana atrás, se incendiara e o seu corpo ficara totalmente carbonizado.

Num flash reviu imagens dos últimos meses. Agora o presente era um ecrã branco, sem imagem, sem som. O amanhã perdera a projecção. Em sucessivos ontens não assumira os hojes. Recusara, adiara… confiara no amanhã. Hoje percebia que o amanhã se extinguira!


Antecedentes

terça-feira, 20 de outubro de 2009

SOB O ALGODÃO BRANCO

Foto de Jo Graetz


Sob o algodão branco
restam palavras adormecidas,
são o silêncio dos segredos
reflectido na penumbra
da pele por arrepiar.

Correm caudais de soluços
engolidos na solidão
duma torrente de dias
desenganados pela espera,
secos pela vacuidade.

Sob o algodão branco
correm lençóis de sonhos
acordados na voz dum corpo,
ilha perdida no mar
desgarrada num vento sem rumo.

Dedos perdidos escondem-se
sob o algodão branco,
pele artificial da noite
onde o desejo procura o dia
a desflorar em gritos de amor.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

PEGADAS [E ASSIM, SIGO OS TEUS PASSOS!]



Vês aquela extensão de areia que se deita de braço dado com o mar? Vês como ele a roça, teimando em apagar-lhe as memórias do passado? Vês como ela se alonga, de novo, quando ele recolhe a sua carícia? E vês como ela aquece no calor dos raios, a que ele acorre para lhe saciar a sede? Há um jogo de sedução que se extingue na efemeridade duma rebentação e se perpetua na existência duma maré. Há um aliciamento na forma como ele a cobre, a atravessa e se esvaece sob a sua superfície. Aquela extensão de areia é o mar do tempo onde as horas se estendem. É a tentação do homem que a deseja moldar na forma das suas mãos. É a evidência do cansaço que se desfaz na sucessão dos dias. O mar são as novas horas que chegam e se sobrepõem. É a razão que desfaz a tentação. É a energia que revigora. Vês aquela extensão de areia que se espalha sob o mar? Vês aqueles passos que o mar não consegue apagar? São as pegadas dos meus pensamentos no caminho em que a ti me entrego.

[Na era digital, também da fotografia, Ampliações são as minhas revelações de algumas sugestivas imagens de SONJA VALENTINA; são ampliações escritas, obviamente pessoais, dos pormenores com vida registados pela fotógrafa]

domingo, 18 de outubro de 2009

TU CÁ, TU LÁ


O aroma dum chá no deserto chamou-me, no sábado, àquele espaço onde, hoje, mora um museu de memórias da Manutenção Militar. Ia ao encontro dum encontro de palavras escritas que se reuniam numa publicação. Porventura com algum exagero é habitual chamar-se poesia a todas as palavras que não se escrevam em linhas tocando sucessivamente ambas as margens da área de registo. Mas…

A tarde começou pela recepção informal de quem ia chegando. Simpaticamente, a principal dinamizadora desta reunião de autores de palavras – Dolores Marques -, acolheu-me à entrada e anunciou-me que a única de quem eu conhecia a escrita, estaria para chegar. Alguns momentos depois dava-se luz real à comunicação que tantas vezes por aqui, ou no blog da AnaMar, se tem feito na leitura dos registos deixados. A autora de palavras que frequentemente invado para desfrutar do prazer de ler e imaginar, ganhava voz.

A tarde iniciou-se com uma entusiástica e apaixonada apresentação de imagens, objectos e recordações do historial da Manutenção Militar, pela Drª Lurdes Nunes. Descendo à ‘Padaria Velha’ iniciou-se o arrepiar das emoções. Quinze cidadãos nacionais, com uma declarada heterogeneidade relativamente às proveniências socioprofissionais, vêem reunidos, numa publicação em papel, muitos textos que derramam sentimentos, emoções que cada um terá sido incapaz de guardar dentro de si. Serão poesia? Porque não? Para mim são necessidades que têm de passar a fronteira da pele, que imigram do corpo onde nascem.

É verdade que se pode escrever como exercício. Este tipo de escrita também pode ser um desafio, uma resposta, o cumprimento dum requisito. E mesmo assim o resultado pode ser arrepiante como foi o caso da compilação concebida pela Drª Carmo Machado – a quem foi confiada a responsabilidade de apresentação da obra – que reúne palavras extraídas a textos dos quinze autores. O resultado é, num primeiro embate, inevitavelmente emocionante. Contudo ao passar, em voo cruzado, pelas palavras publicadas neste livro sob o título de Tu Cá, Tu Lá, fico com a certeza de que mais do que a intenção de escrever poesia, cada um dos autores terá sentido a necessidade de expor o seu âmago em palavras. É justamente a premência das palavras que as torna únicas e comovedoras.

E recorrendo a uma imagem que guardei das palavras proferidas por AnaMar - que assumiu a ‘indisciplina’ tantas vezes respirada na sua escrita, despreocupada quanto a regras, mas em que urge a precisão de dizer – quem assim escreve talvez não tenha a pretensão de ser poeta, mas só o de ser um poema para alguém.

Para além do prazer de personificar o rosto de palavras tantas vezes lidas, ficou-me o sabor de perceber que ao haver vontade, quando existe necessidade, o ser humano excede-se tão tranquilamente quanto expondo palavras nas quais se escreve.

sábado, 17 de outubro de 2009

NA URGÊNCIA DAS PALAVRAS

Foto de Piero Calucci


Na urgência das palavras
há um esvoaçar ansioso
incontrolado, arrebatado;
soltam-se como beijos,
regurgitações da alma
cegas num voo agitado.
Na ablepsia do desejo
corre a acrasia da emoção
sobre planícies de ventura;
bater de asas planado
sobre labaredas exaltadas
na irrupção dos sentimentos.
O abotoar da realidade,
oculta sob a película virtual
duma atracção ambicionada,
perscruta-se na esplanada dum olhar
estendida na gustação dum abraço
desafogando o rio no pélago celeste.


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

DIANTE DE... OU EM DIANTE?

Foto de hejha


Diante de mim
tenho um copo.
Dentro de mim
tenho a sede.
Diante de mim
tenho a água.
Dentro de mim
a incerteza.
Engulo toda a água,
sacio o deserto?
Ou contemplo-a,
devaneando,
a satisfação
de a sorver?
Diante de mim
tenho a taça.
Dentro de mim
a ansiedade.
Bebo a felicidade
em pequenos goles,
prolongo-a,
distendo o hoje?
Ou sorvo-a
num só trago
como se o amanhã
fosse nunca?
Tenho um deserto,
tenho sede,
tenho um copo
e a incerteza
de como encher
… amanhã.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

JANELA INDISCRETA

Foto de Sonja Valentina


Todas as manhãs
há uma janela indiscreta
que me espreita.
Percorrendo caminhos
entre o chegar e o partir,
não a sei mas ela sabe-me.
Na sua indiscrição de janela/mulher
conhece o ritmo
dos passos em que me transporto.
Certifico-lhe a minha existência
na rotina do meu eu
repetindo-me nas horas em que me demoro
e ela me espera.
Na invisibilidade do seu olhar
adivinha o tempo que me falta
conta o que me resta.
Refugia-me a passagem
nos aromas matinais
duma mesa a que não me sento.
Por detrás daquela janela indiscreta
há muitas páginas por abrir…
soubesse eu que existe um livro
por escrever.


Passos com olhares, ao invés de ampliações, são palavras trazidas pela inspiração e posteriormente complementadas pela objectiva do olhar da Sonja.


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?


As planícies esquartejadas em lotes começam a transformar-se. Deixam de ser áreas desérticas ou de cultivo, para começarem a ser povoadas. Por entre elas o avião procura as pistas alcatroadas. Sobrevoa uma estrada coberta por um pó alaranjado. Junto a uma lagoa, as habitações requintam-se no aspecto e nos arbustos com que se delimitam em propriedade. Algumas telhas substituem os tectos de zinco. Finalmente o solo moçambicano.

Ultrapassadas as formalidades fronteiriças, a aventura de quem chega sem ser esperado. Sem ter quem proporcione recepção e os cuidados ansiados por quem, pela primeira vez, chega a um território com marcas reconhecidas, mas que cresce bem longe da civilização a que se está habituado.

Só o alojamento estava planeado para as duas primeiras noites. Tudo o mais lhe era desconhecido. Descobrir, pesquisar era a necessidade que mais espaço lhe ocupava na bagagem. Um duche tornava-se imperioso. O hotel era uma realidade fora de todo o contexto. Uma ilha perdida numa cidade onde alguns bairros tentavam disfarçar a pobreza dum povo que parecia ter sido esquecido pelo desenvolvimento.

Refrescado o físico, renovada a indumentária, havia que resistir ao cansaço. Era preciso chegar com celeridade à Universidade Pedagógica de Maputo. As ruas sucediam-se em pavimentação incompleta, destruída, gasta, abandonada. Alguns edifícios revelavam a traça colonial. A seu lado pequenas habitações viviam na demolição de madeiras e alumínio desarrumados. No virar duma esquina, os arruamentos desapareciam. Aqui e ali, presumíveis jardins assemelhavam-se a desertos destruídos, onde alguns bancos foram esquecidos pelo tempo. Almas solitárias permaneciam estáticas nas horas, à sombra das árvores que delimitavam as estradas, vendo passar o tempo, que na maioria dos dias é mais frequente do que as viaturas ou as pessoas. Algumas ruas mantêm o nome de províncias ou terras lusas.

O responsável pelo Centro de Língua Portuguesa, recebeu-a na singeleza duma biblioteca cujo acervo havia sido responsabilidade do Instituto Camões com o objectivo de assegurar o ensino da língua portuguesa.

- Boa-tarde! Cheguei hoje de Lisboa. Procuro o Dr. Miguel Albergaria. Sei que veio em missão para Moçambique. Em Lisboa não me souberam dar qualquer detalhe mais.

- É verdade! O Dr. Miguel Albergaria dispôs-se a colaborar no ensino do português junto de crianças que vivem em áreas mais iletradas. Partiu há algumas semanas para a zona de Massinga. Não tenho notícias dele há bastante tempo.


Antecedentes

terça-feira, 13 de outubro de 2009

QUERO

Foto de Andrea Fantoni


Eu quero morar
nesse coração vazio,
depósito abandonado
por memórias apagadas.
Eu quero apertar-me
nesses braços abertos
de sabores esquecidos
no frio da solidão.
Eu quero desembocar
nesse castelo de fantasia,
história de esperanças
matizando os teus dias.
Eu quero ocupar
o lugar que te sobra
em lençóis dum oceano
desaguando na madrugada.

Feito invasor aguardado
quero tomar esse reino
onde tuas mãos me esperam
num cerrar de pálpebras…
e quero inundar os teus dias,
alagar os teus sonhos,
ensopar o teu olhar,
transbordar de tuas mãos,
penetrar no teu corpo
e cair…
na tua noite,
no teu solo,
na tua voz,
no teu cântico…

E quero preencher-te
até que não fiquem hiatos
e as palavras sobrem
e se espalhem pelo chão
e que as pises, as ignores
mas que permaneçam
colhíveis…
para que as semeies
sempre
que me queiras em ti!

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O TEMPO DO SILÊNCIO

Foto de Christian Hansen


Eu queria ter o tempo do silêncio
para o compor com palavras;
a cada pausa ouvir
as batidas do coração que não me pertence
e escrever-lhe o som dos sentidos.

Eu queria ter o tempo do silêncio
para nele fazer correr a minha inquietude;
a cada pausa cheirar
a infinitude do olhar com que não vejo
e desenhar-lhe a melodia dos desejos.

Eu queria ter o tempo do silêncio
para nele deitar toda a verdade;
a cada pausa tactear
a ansiedade da pele que não alcanço
e redigir-lhe versos de prazer.

Eu queria ter o tempo do silêncio
para lhe apartar a solidão que é minha;
a cada nota unir-lhe todas as pausas
para que o coração sinta o olhar da pele,
o prazer dos anseios
decorar a agitação que escrevo
em palavras
nas interrupções do silêncio.

domingo, 11 de outubro de 2009

ERA UMA VEZ...

Foto de Bogdan Panait



Era uma vez um terreno cuja areia raramente avistava o céu. Este acordava, quase sempre, com uma neblina adormecida pelo repouso. Escondia o brilho daquele astro que demorava em irradiar. Nessas manhãs, o sol parecia uma pequena pérola tentando iluminar aquela área lá em baixo, muito densa. Ainda adormecida.

A vegetação era diversa. Árvores muito altas, outras mais recentes. Algumas curvando-se à nascença, outras renovando pujança nos troncos com marca de muitas histórias. Umas eram um simples tronco cuja robustez se apreciava no seu diâmetro. De outras saíam ramos que se desmultiplicavam noutros mais. Umas caíam depois de muito crescer. Outras disparavam mal nasciam.

As folhas destes arvoredos tomavam as mais diversas colorações. Multicolores quando exprimiam alegrias. Monocromáticas quando a preocupação se adensava. Cada árvore tomava a sua cor. Cada árvore reflectia brilhos diferentes.

Em certos momentos as ramagens tocavam-se, cruzavam-se, emaranhavam-se. Era difícil separá-las, discerni-las, individualizá-las. Noutras ocasiões parecia que o fogo passara por ali devastando, queimando, arrancando pela raiz, deixando apenas cinzas ao sabor do vento. Noutras circunstâncias ainda, a vegetação parecia nunca ter existido. Pura ilusão pois nunca uma mata se transforma num deserto…

Nesta floresta existia um casebre por onde passavam algumas destas árvores. De dentro desse espaço era habitual chegar um ruído semelhante a uma máquina de serrar. Perto dessa zona corria um curso de secreções que tanto poderiam ser lágrimas, quanto seiva. Algumas das árvores nunca por lá passavam. Estas cresciam fortes em direcção ao céu. Vigorosas, coloridas, inebriantes.

Nunca se descobriu nenhum registo histórico sobre este espaço, sobre estas árvores. Consta que existirão outros espaços assim. Alguns mais revelados, outros totalmente desconhecidos. Nalguns terá sido possível penetrar, noutros inúmeras tentativas ter-se-ão revelado infrutíferas. Sabe-se que no presente o ‘era uma vez’ continua a fazer sentido. Há quem diga que àquele casebre se chama razão e que tenta reger o bosque dos pensamentos.

sábado, 10 de outubro de 2009

À ESPERA DO VENTO

Foto de Armand Belakow


Ato-me
a este oceano vazio
onde os corais choram
lágrimas secas de sal.
Rodam
em torno de mim
marés que não abraço.
Estão mais longe
as praias de areia despida.
O horizonte
é uma linha ténue
que separa o dia da noite
não diferenciando
a chegada da partida.
Engulo
o sabor amargo da espera
eternizado na insegurança
da alvorada.
Flutuam sobre mim
correntes de querer,
pétalas de desejo
disfarçadas de amor.
Oiço o cântico das sereias
soletrado nas palavras
que me acordam.
Subo àquele rochedo,
ermo onde prendi meu coração,
sacudo de mim o pó das estrelas
e fico…
à espera do vento.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

RUA DA INCONSTÂNCIA

Foto de paintednegative


Quis regressar mas perdi-me
neste deserto murado.

Construo oásis
nos voos de abutres emergindo do céu.

Desenham-se labirintos
nos passos desordenados em fuga às sombras.

Perdi as fases da lua.
Sou marinheiro
com duas embarcações no olhar
atracadas
em demanda de um ideal
navegante nos mares da utopia
ou presas a um cais
num mascarado cepticismo
de empreender nova viagem.

Mata-me de sede
esta indefinição que tapo com a pele.

Caio
no vazio do céu que me enche.
Não é um espaço por preencher
antes um oceano que me engole.

Passam por mim
auto-estradas de areia,
vertigens cravadas na carne,
sufocos que me cerram as pálpebras.
Esqueço-me de ver.

Procuro
e não sei onde guardei as chaves
da casa que habita em mim,
lugar onde quero morar.


AS PALAVRAS ESCRITAS NÃO MORREM!

Foto recolhida aqui

Por razões diversas – umas entendíveis, outras inexplicáveis – não gostei, não consegui, resisti e recusei entrar na escrita de António Lobos Antunes. Há alguns meses atrás, alguém conseguiu fazer-me reconhecer que em frases soltas – apresentando-mas como citações anónimas – havia genialidade. Talvez essa pessoa, hoje, não evitará um sorriso se ler as linhas seguintes.

A entrevista de Sara Belo Luís ao Prémio Nobel português sonhado, mas ainda não concretizado, na edição desta semana da revista Visão, terá sido o texto onde consegui ler mais palavras de António Lobo Antunes, porque terão sido as que melhor compreendi e senti. Em muitas delas consegui penetrar no seu universo, consegui sorrir com o seu humor, consegui transpor para o meu imaginário alguns dos seus pensamentos expostos nesta conversa.

Um primeiro exemplo será a referência às memórias das visitas a casas tristes, habitadas por idosas tristes, decoradas com móveis que carregavam toda a tristeza da habitação e das moradoras. Ao ler as palavras de António Lobo Antunes não consegui viajar no tempo e regressar àquela casa enorme, com um pé alto que faria quatro de mim, com os tais ‘corredores compridos’ e as ‘fotografias de mortos’. São quadros que inevitavelmente ficam dentro de nós.

Mais à frente retive a ideia de que sob a forma de ‘guerra civil constante’, dentro de nós, todas as grandes opções acabam por ser irracionais. São factos vindos de céus desconhecidos que aterrando nas nossas emoções nos fazem escolher. Gostei de ler a sua convicção de que a cultura tem um poder que a politica não possui. O de, realmente, poder fazer as pessoas felizes. É ela, a cultura, que poderá responder ‘às nossas necessidades profundas, às nossas convicções, à nossa necessidade de felicidade.’ Partilho desta teoria pois acredito que é na cultura, no produto criativo cultural que o comum dos cidadãos se revê. É aí que consegue abrir portas para sonhar.

Guardo para o fim uma citação desta entrevista, porque me revi nas palavras de António Lobos Antunes quando refere que passava longas tardes com Ernesto Melo Antunes em que trocavam dez, no máximo quinze frases. Também eu creio que a comunicação é possível num silêncio parco em vocábulos, se os interlocutores se entendem. Depois sorri quando o escritor diz que se dá bem com as pessoas que falando tanto só lhe exigem um sim de vez em quando, permitindo-lhe desligar do que dizem. Finalmente algo que julgo transparecer a convicção de quem sabe que o ocultar não será a forma adequada de vencer o jogo: ‘Mas, depois da doença, aprendi a jogar com as cartas para cima porque, ao pé do nosso fim físico, tudo o resto perde importância.’

A vida mais não é do que saber jogar com as oportunidades que nos caem em sorte. De nada vale escondê-las. Saber utilizá-las será a arte que nos fará diferentes. E vencedores.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O DESEJO DAS PALAVRAS

Foto de Maurizio Vicedomini


Quando a noite se deita
repousam as histórias
no leito do dia.
Abro estradas
no silêncio da noite
para que em mim entrem
as tuas palavras;
pequenas estrelas
num céu em eclipse
que me despem a solidão
e ameigam o corpo.
Desaperto a dormência
nas mãos vazias
que enches com a minha pele.
Nas velas do meu sonho
sopras o ofegar da paixão,
merengues derretidos,
na indolência dos minutos,
vagando a brancura do linho
às portas da madrugada.
Esmagas-me a levitação
com o peso do desejo,
dissolvo-me em sudação
para te invadir hiatos;
desfaço-me em seiva
para te semear o sangue
e fecundar a manhã
com novos vocábulos.


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?

Foto de Philip LePage


A dez mil metros de altitude apercebia-se de como alguns ímpetos podem romper os tecidos da razão cerzidos em princípios e ponderação. Tomava noção da fragilidade do querer quando se acendem outras vontades tentadas domar pela racionalidade, mas que insistem em se manterem activas na força dos sentires.

A decisão que tomara e a levara a estar, nesse momento, viajando para longe de casa, seria uma ideia louca e inquestionavelmente recusável há uns meses atrás.

Toda a razão cai por terra quando as emoções falam mais alto. A razão ficara para trás, abandonada em terra. Fora a emoção que a impelira a voar. A partir em busca do que recusara. Do que se esforçara por ignorar. Até ao momento de se sentir incapaz de resistir mais. Até ao instante em que a água transbordou ou o oxigénio se esgotou.

Viajar até Moçambique tornara-se a única opção possível. A única forma de encontrar quem tinha deixado fugir. De dar asas ao sentimento que tantas vezes recusara reconhecer. De deixar arder a vela que tinha pavio e não as outras que queria fazer queimar.

Partira sem referência, sem certezas de como chegar àquela necessidade de repor a felicidade no copo que queria ser por ela bebido. Partira de peito aberto, de braços estendidos, acelerada nas batidas dum coração que já não sabia esperar mais.

Já não faltava muito para aterrar.


Antecedentes